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sexta-feira, 4 de abril de 2014

Trinta e cinco centímetros de rio

Bom dia, bom dia! Essa não demorou tanto, não é? Então, vou direto ao assunto. Boa leitura de mais uma Crônica de Balaio!


            Quando eu nasci, minha mãe já era costureira. Já vivia mexendo com panos, e como dizia o tio Lisboa, “coisa mais estranha, essa que tua mãe faz. Ora, por quê?, porque ela pega um pedação de pano inteirinho, aí pinica, pinica, pinica e depois sai costurando tudo de novo! A gente pisca tem um pano, pisca, ai um monte de retalhos, pisca de novo, vê uma blusa. Coisa mais estranha, essa que tua mãe faz.” Pensando assim, pode até ser. Mas é linda a arte da costura e eu me divertia demais com os instrumentos de trabalho da mainha. Os botões eram os meus favoritos. Não será que toda criança gosta de brincar com botões? E a cada visita da tia Lourdes, ou de qualquer outra freguesa, o ritual era o mesmo: pegar os cortes de tecido, elogiar ou falar mal do gosto da freguesa com a freguesa, olhar os modelos, debater, opinar e logo em seguida tirar as medidas.
            Aquilo pra mim era um mistério. Porque algumas medidas eram redondas: cintura, quadril e busto; outras eram retas: largura dos ombros, comprimento da saia, altura da pala, tamanho das mangas, mas todas, sem exceção, eram tomadas com sua trena e viravam centímetros, invariavelmente. Ela tinha um chamego com aquela trena. Quer dizer, ela tinha um chamego com todas as suas ferramentas de costura ou qualquer outra. Sim, porque lá em casa quem consertava os eletrodomésticos, fazia os pequenos reparos, desentupia, pintava e bordava era a mainha. Mas a trena, não sei se por sua versatilidade, era usada por outros moradores da casa, que não raro, ou melhor, frequentemente, para não dizer sempre, a deixavam em qualquer outro lugar que não a gavetinha da máquina. A mainha ficava possessa, como ela mesma dizia. Quando a encontrava, dobrava em quatro e surrava a coitada da mesa, que não tinha culpa nenhuma no cartório. Só se ouvia era aquele estalo seco, que ia de taaá a tiii, dependendo de quanto da trena pegava na mesa.
            A trena realmente era uma versatilidade em pessoa, quer dizer, em objeto. Era também com ela que a mainha registrava o nosso avanço vertical, o que viria a se repetir naquela típica quarta-feira de outono, se é que há outono na Caatinga cearense. Mamãe tinha ido à rua comprar uns aviamentos para as últimas costuras e chegava com uma trena nova, bem linda. De um lado, toda amarelinha com números e marcações em preto, e do outro pedacinhos alternados e iguais em branco e vermelho, com umas chapinhas de metal arrematando as pontas. Ela devia estar ansiosa para usar logo a trena. Tanto, que mal entrou dentro de casa, chamou logo os três. A sequência, claro, era a de costume: Anna, Júnior e Ney. Sempre era uma diversão, só que naquele dia foi especial. Eu nunca me senti tão mais alta que meus irmãos. Trinta e cinco centímetros a mais! E a mainha ainda me mostrou na trena nova o que significavam 35 cm. Trinta e cinco novos centímetros, que não saíram mais da minha cabeça.
            Como eu era grande! Dali em diante passei a olhar o mundo a partir dos meus 35 cm a mais. Peguei escondida a trena velha e saí com ela no bolso do calção feito com o retalho de uma saia da tia Lourdes. Mesmo enroladinha e bem apertada, parecia que eu carregava uma lata no bolso. Primeira parada, o quintal. Mas no caminho, encontrei o Hafles e foi inevitável. Quarenta centímetro de cachorro sem rabo. Depois o Túlio: 25 cm de gato sem rabo. Eles não me deixavam esticá-los pela orelha e pelo rabo para ter uma medida mais exata. Que droga!, mas tudo bem, eu não entendia mesmo porque eles tinham que ter rabo?. Quando cheguei no quintal, aí o desafio era ainda melhor: medir as árvores. Foi preciso fazer malabarismos, aliás, todos inúteis, para ter uma medida ainda que aproximada delas. A única que consegui fazer bem feita foi a dos caules. Foi uma euforia, quando percebi que tinha entendido como as medidas redondas viravam centímetros! Corri até meu quarto e voltei com um bloquinho e um lápis. Ora, era preciso anotar tudinho como a mamãe fazia. Depois fui meditar sobre os números e comparar aos meus novos 35 cm. Estava conseguindo medir até as nuvens! É bem verdade que eu tinha que ser muito rápida, mas conseguia me virar. Nada escapava à minha super trena. Nada. E eu estava realmente determinada a medir o mundo e todo mundo. Quando a trena não podia aparecer em público, eu tirava a medida em palmos e depois os fazia caminhar sobre ela para então saber o tamanho do objeto medido.
            Medir a natureza fazia com que eu me sentisse A cientista. Certamente o que eu pudesse avaliar com minha trena estaria ao meu alcance, ou ao alcance da minha compreensão. E tudo, absolutamente tudo podia ser medido por aquele instrumento mágico. Eu estava bem segura disso. Não por acaso, ela ia comigo pra tudo que era lado. Colégio, igreja, rua, sítio, mercearia, todo canto. Um dia, fiquei chateadíssima porque choveu e, como eu estava gripada, minha mãe não me deixou tomar banho com os meninos. Perdi a chance de medir a chuva. Até anotei no bloquinho: chuva, dois pontos. Quando percebi que aquela chuva não seria mesmo medida, circulei um espaço depois dos dois pontos para destacar bem que ali viria uma medida. Ai o tempo passou, eu fiquei boa e a vida novamente desafiaria minha capacidade medidística.
            Naquela altura do ano, o rio já estava mais baixo e suas águas mais tranquilas e limpas. Quando o painho disse que, no sábado, íamos passar o dia no rio, foi um alvoroço! Fiquei só imaginando tudo de novidade que teria pra medir. Vixemaria, minha lista de medidas iria crescer demais! Logo chegou o sábado e nós chegamos ao rio. Nem bem desci do carro já estava procurando as novas figurinhas que ampliariam meu álbum. Pedras, plantas rasteiras, restos de madeira, casa de caramujo, tudo.
— Anninha, minha filha, não vem pra água não? Tá uma delícia de quartel! O que é tu tá fazendo? – gelei quando pensei que minha fosse brigar por causa da fita métrica – Bem que eu senti falta dela... – reagi com um sorrisozinho amareeelo... e sem querer contrariá-la parei com minhas medidas e fui pra água. Estava mesmo divina! Eu, meus irmãos e água brincando. Pulei, nadei, mergulhei, corri e num estalo de pensamento senti de novo aquela sensação de euforia. E se embaixo d’água as coisas tivessem outras medidas? Não resisti.
Sai da água e fui buscar minha trena. Por um segundo, pensei se ela resistiria a um banho de rio. Mas a resposta veio com ela já mergulhada em minhas mãos. Tentei inutilmente ficar parada na correnteza fazendo de minhas pernas um motor. Além da visão ficar estranhamente turva embaixo d’água, nãos seria possível confiar naquelas medidas tomadas assim de tão mal jeito. Emergi. Com os olhos ardendo de tanto ficarem abertos na água, fiquei parada só escutando o barulho que o rio fazia quando passava por mim. Eram palavras bonitas com bê, éle, às vezes xis e as vogais quase todas. Uma música linda de morrer. As mãos ainda estavam embaixo d’água quando as separei com o polegar da mão esquerda no 1 e o da mão direita no 35. Ai a pergunta: quanto rio será que cabe em 35 cm? Fiquei de pé deixando as mãos ainda mergulhadas. Não, assim não dava pra medir o rio. Soltei o 1 e sacudi as mãos e a trena como se quisesse secá-las. Sei lá eu pra quê. Voltei a segurar a ponta do 1 com a mão esquerda e deslizei a direita desde o 10 até o 35 e pousei a trena sobre a água. Mais perguntas foi o que resultou: pra que lado fica o 1? O 35 segue a correnteza? Devo medir de lado ou no comprido? Essa é uma medida reta ou é das redondas? Faço um círculo com a trena e vejo quanto rio passa dentro dela.
Nenhuma das respostas me agradava e eu fui ficando impaciente. Puxa vida, isso nunca tinha acontecido! Como assim, eu não sabia medir 35 cm de rio? Acho que quem mede rio mede fora. Não, não, quem mede rio deve ter um medidor de rio. Ou talvez, mede a areia em baixo d’água, ou das margens. Mas quem disse que a areia do fundo é rio? Fui ficando ainda mais irritada com aquelas respostas e perguntas que não me diziam nada. Será que eu pergunto à mainha?
— Maaaaaãe! como é que a gente mede rio? – ela riu e eu achei que não viria uma reposta.
— Ah Anninha, minha filha, medir um rio... cada um mede o rio como pode, como sabe.
— Mas eu não seeeei.
— Então inveeeente! – eu adorava quando minha mãe me dizia pra inventar.
            O jeito foi me tranquilizar e ficar puxando a trena pela água. Eu, trena e água brincando, enquanto eu inventava um jeito de medir 35 cm de rio. Foi aí que num descuido a trena nadou da minha mão e se enfiou na correnteza mundo afora. Uma mão quis tentar pegá-la, mas a outra não. Um olho quis ficar triste, mas o outro não. E eu fiquei ali paradinha, esperando que alguma ideia me salvasse daquele desolamento. A trena dançou num redemoinho e depois seguiu faceira seu caminho, quer dizer, seu aguinho. Me diverti com a ideia de aguinho. E como as ideias são magnéticas, uma chama a outra, e além de tudo elas não gostam de ficar sozinhas, logo veio aquela que me disse que pra medir um rio é preciso nadar com ele. Então estava explicado, minha trena estava medindo o rio. Pena que essa medida eu não poderia anotar no meu bloquinho. Daquele rio em diante, passei a conviver com uma ideia que só veio com meus novos 35 cm: parece que na vida há medidas que não podem ser registradas e medições que não podem ser controladas.
            Minha mãe, que quando eu nasci já era costureira, observou aquilo tudo com a atenção de quem descobre o direito e o avesso de um corte de anarruga. Na semana seguinte, ela voltou à rua. Chegou em casa, tomou seu banho e depois do almoço, sentou-se à máquina para continuar o serviço do dia anterior. Mas nada de se ouvir aquele barulho, tão familiar, da máquina juntando pedaços. 
— Filhaaa! Venha cá.

— Senhora – sem dizer nada, ela me entregou uma trouxinha de tricoline com estampa de gatinhos amarrada com uma fita linda – Taqui pra você continuar fazendo suas medidas – agradeci com um abraço e um beijo e voltei pro dever de casa, já mirabolando as próximas medidas. Ligeirinho começou-se a ouvir a máquina. Não sei que onomatopeia escrever, para descrever bem o barulho da máquina de costura da minha mãe. Então é melhor não tentar. Melhor é deixar que no pontilhado das próximas linhas, se escute o barulho da costura -------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- Será que era possível medir o barulho daquele estranho ofício de minha mãe?

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