Mais uma Crônica de Família para encher o Balaio de delicadeza e ternura.
O ano
era o de 1937. Isso mesmo. O ano em que Getúlio Vargas outorgou a nova
Constituição, implantando a ditadura do Estado Novo. Também foi nesse ano que a
rádio Tupy entrou no ar e Orlando Silva gravou Carinhoso, de Pixinguinha e João
de Barro -
“meu coração, não sei porque, bate feliz quando te ver...” Ainda naquele 37 foi
inventada a caneta esferográfica, pelo húngaro Ladislao Biro e a primeira
fotocopiadora foi patenteada nos EUA. Muitos ganhos. Mas foi este mesmo ano que
o Brasil perdeu Noel Rosa. Pois é. O país perdia um ícone na música e eu
ganhava uma tia. Quer dizer, ganhar não ganhei, porque ali eu ainda nem era.
Mas que foi um ganho foi. No dia 22 de setembro de 1937 nascia Antônia
Teixeira, que jamais seria chamada pelo nome de batismo e sim por uma apelido,
que depois eu soube, é destinado aos Antônios e Antônias: Tota. Ou no caso dela,
Toty. É assim que ela assina seus quadros e textos.
Não foi
por caso que comecei a conversa com dados históricos. Tem tudo a ver com ela,
que ainda muito moça se formou professora na Escola Normal em Crateús e por
anos a fio ensinou Estudos Sociais. Começou ensinando na Escola da Dona Rosa
Morais, prima legítima de sua mãe e sua alfabetizadora. Depois foi professora
no Colégio Pio XII, cujo proprietário era o tio Zezé, que antes era o Monsenhor
Bonfim e depois foi o companheiro cansado da tia Joaninha.
Nascer no ano de implantação
do Estado Novo foi só uma tolice da História. A Toty sempre demonstrou ter
liberdade e independência. Tanto, que casou tarde e com um homem mais novo que
ela, o que era bem incomum naquele tempo. Acho que minha tia sempre teve a
liberdade do artista e a elegância do esteta. E por causa dessa história toda
ela é sempre requisitada para escrever os discursos, as cartas, as falas bem
articuladas, com a medida certa de emoção, que tanto enobrecem a invenção de
Biro.
Agora em outubro, a cidade
comemorou o centenário de Dona Rosa Morais. Claro que a Toty não só participou
da comissão organizadora, como preparou lembranças delicadas, dedicou-lhe um
texto, como inevitavelmente seria, e junto com outros ex-alunos ainda cantou na
lá frente. Dos nove ex-alunos, que vi lá no palco, um terço era de Azevedas:
Toty, Joaninha e Madalena. Todas organizadoras, cada uma no seu reino. E ela, a
Toty, é a senhora das pequenas coisas, dos detalhes e da mansidão. Também é a
desenhista oficial das árvores genealógicas. A primeira, ela fez, se não me
engano, na comemoração das Bodas de Diamante dos meus avós. Fez treze. Uma para
cada filho e outra pro vovô e a vovó. Dá para imaginar quantos nomes precisavam
caber numa árvore de doze galhos? Mas com a letra dela coube! E a ideia foi
sendo sofisticada.
A última versão da árvore
ela preparou para entregar a cada irmão durante a celebração dos cem anos de
nascimento de seu pai. E não foi desenho não. Cada irmão recebeu um galho e uma
caixa de papelão bem bonita, com a foto dos pais sobre a tampa e sua própria no
verso. Dentro, vinham pequeninas molduras 3 x 4, feitas de biscuit com a foto
de cada um daquele galho. E o tronco, sobre a mesa bem arrumada, só esperando os
galhos revividos carregados de fotistórias penduradinhas. Aí cada filho, em
ordem alfabética de nascimento ia incluindo seu galho. O mais divertido era
ouvir os “agora tu Zé, agora a Joaninha, é tu Socorro, cadê a Madalena? é a vez
dela...” Foi uma festa tão linda, que os olhos todos ficaram sorrindo.
Quando crianças era na casa
dela que ficávamos com minha mãe durante as férias em Crateús. A casa, as
roupas, o universo dela inspiravam a elegância e a atmosfera da artista, que eu
imaginava. O desenho de sua casinha com tantas plantas, baixinha, aconchegante,
me dava sempre a sensação de estar entrando num mundo de outro mundo. Ainda
hoje eu tenho um não sei quê de excitação com o veludo e o dourado. Quando ela
começou a reforma nessa casa, foi morar na casa da Coronel Jiló, onde morou com
sua avó durante a infância. Não só ela, mas cada um que ia completando seus
sete aninhos, saída do Curral Velho, que ficava a uns 20 quilômetros da cidade,
e ia morar com a Mainha, para estudar. Era assim que eles chamavam a avó.
Quando a tia Tota morou lá, pela segunda vez, o sobrado, que durante o ano era
o quarto do Tino, virava um albergue nas férias! Mas diferente de um albergue,
lá o dia começava igual para todo mundo, que estivesse hospedado, e bem cedinho.
O sol ainda limpava a remela
dos olhos e lá ia a tia Tota subindo a escada de madeira, seguida pelos sons
dos próprios passos, com uma bandeja carregada de copos da Tupeware cheinhos de
leite com nescau. Ela nos acordava com aquela voz mansa e entregava o copo. A
nós cabia tomar o leite no gute gute, praticamente dormindo. Limpávamos o
bigode de leite com a borda do copo e nos deitávamos de novo. Sua marca
registrada. Duvido que haja um primo ou prima que não lembre disso! Mas ruim
mesmo era pro coitado do Júnior, hoje seu genro, que quando namorava a Jô e se
hospedava por lá, tinha que tomar o bendito desjejum sem suportar leite. Mas isso
ele só confessou outro dia. Essa é a Dona Toty, que nem a mais avançada
fotocopiadora vai conseguir reproduzir!
Conhecedora do mundo através
dos livros, só há pouco tempo teve a oportunidade de desbravá-lo com suas
próprias pernas. Foi depois que a vovó decidiu que já estava na hora de
encontrar meu avô, que as Azevedas resolveram ganhar esse mundão de meu Deus e
começaram a fazer viagens, muito simples para alguns, mas para nós, épicas! E
foi na primeira viagem delas para a Europa que ela ganhou o título de MC Toty. Sendo
ela a senhora das coisas meticulosas, precisas e cuidadosas não poderia jamais
ser a senhora da ligeireza. Isso fica pra Socorro ou pra Madalena. E foi aí que
durante os passeios em Lisboa, sempre se estava a esperar por ela. De certo,
encantada com tudo aquilo que via. Eu faria o mesmo: me demoraria diante da
mais simples visão do velho mundo. Claro que isso virou motivo de chacota entre
as irmãs.
— Cadê a Toty? – perguntava
uma.
— Ah, a mata capim deve tá
examinando a... – respondia a Socorro aperreada.
— E Toty, heim, cadê? –
perguntava outra.
— Ah, a mata capim... já
viu! – respondia a Socorro gesticulando com se imitasse a lentidão da irmã.
O MC vem de mata capim que é
tudo que se demora tempo suficiente num lugar a ponto de matar o capim sob seus
pés. Aí o Brenno que é gaiato que só cunhou o novo apelido moderno pra tia: MC
Toty. Isso virou a razão das melhores rinchadeiras entre elas. Sim, porque se
há uma habilidade que é de todas é a risada. Como elas se divertem quando estão
todas juntas. Pois é, mas a Toty não é só esse anjo de candura, não.
Nessa colheita de histórias
sobre a família da minha mãe fiquei sabendo de uma espetacular. Foi a mainha
que me contou. Era uma época do ano de festividades religiosas e meus avós
tinham ido à quermesse no Santo Antônio, um vilarejo mais ou menos perto da
fazenda. Elas, que têm apenas um ano e oito meses de diferença, tinham ficado em
casa com os irmãos. Aquele tempo o maior cuidava do menor, não importando o
quão pequeno fosse o maior. Acredito que minha mãe tivesse seis e ela quatro ou
cinco anos. O que minha mãe me disse foi que como ela, Vilanir, era a mais
velha e portanto, tinha cuidado da irmã, ganhou de presente a boneca de
celulose que meus avós deviam ter ganhado nas brincadeiras da quermesse. Pois a
Toty, num ato de fúria infantil, não teve dúvida e jogou a pobre boneca no
fogão a lenha. A mainha conta que numa lambida só o fogo levou a bonequinha. Aí
deve ter sido aquele chororô e briga. Mas isso eu só imagino porque ela não
contou nada. E o melhor é que a própria Toty não se lembra do episódio. Mas tem
nada não, tem a Vilanir pra contar.
Hoje
elas devem se encontrar mais tarde lá em Crateús, pela triste ocasião do
velório da Marizinha, que foi criada junto com elas. Vão começar tristes e vão
chorar, como de costume, mas sempre terminarão dando risadas das histórias das
quais irão se lembrar para manter viva a memória da amiga. A Dona Toty, com
certeza, está preparando alguma homenagem. Porque ela é assim: a senhora da
generosidade que há nos pequenos gestos de carinho. A senhora por quem meu
coração vai sempre bater feliz e meus olhos sorrir quando a encontrar. E eu sei
porque.
Uma crônica linnnnnnda, terna. Coisa boa!
ResponderExcluirVocê, como sempre, prestigiando esse espaço, né? Linda é você!
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