Essa é a segunda história da pequena série "Essa história de amor". Essa também, fui buscar no baú da infância, como diria o Manoel de Barros. Espero que goste e comente. Boa leitura.
Ela nunca conseguia gritar e
naquela noite, não foi diferente. Antônia acordou assustada com o pesadelo e,
sozinha no quarto escuro, chorou baixinho, toda encolhidinha na sua cama rosa,
esperando que o sol amanhecesse logo aquele dia. O mais estranho é que o
pesadelo era quase sempre o mesmo. Ela corria, corria, corria, mas tinha sempre
a sensação de que o cachorro do seu Rantzau a alcançava. Lá na rua, todo mundo
tinha medo daquele cachorro, que até podia ter um nome, mas ninguém sabia. E
quando por algum descuido o gigante de pelo branco e cinza saia para rua, era
um alvoroço!!
— O cachorro do seu Rantzau está solto!! – gritava um.
— Cuidado!! Cuidado, com as crianças!! – alertava outro.
Antônia não estava muito segura,
mas achava que tinha sido mordida pelo cachorro do seu Rantzau. Ou melhor,
quando achava, tinha certeza, embora nunca tivesse encontrado uma cicatriz que
comprovasse aquela ideia e nem nunca perguntado aos pais, se aquela sensação,
tinha acontecido um dia. Mas estava claro que só podia ter acontecido. Senão,
porque aquele pesadelo repetitivo? E o mais estranho na história toda era que
sua gatinha, Valentina, fiel protetora, que arranhava qualquer um que se
metesse a besta com Antônia, sequer aparecia no sonho. Tudo muito estranho. E o
pior era que a menina nunca tinha conversado com sua mãe sobre os pesadelos.
Aliás, com ninguém. Nem mesmo com Valentina!!
Quando à noite, Antônia era
visitada pelo maldito pesadelo, a manhã era de tristeza. Amanhecia distante da
mãe e com raiva de Valentina. Dava até dó de ver a gatinha se enroscando na
perna dela, sem entender porque a cara de brava, ou aquele olhar perdido. Antônia
também não entendia porque nem Valentina, nem sua mãe apareciam no pesadelo
para salvá-la. Nem mesmo quando ela voltava para o mundo do seu quarto. Depois
que acordava ficava ali, chorando sozinha, com medo de sua mãe acordar e ainda
por cima, brigar com ela. Talvez o mais estranho fosse esse medo de falar e de
gritar pedindo ajuda. Aí, depois que o dia seguia e ela percebia que nem sua
mãe, nem Valentina adivinhariam a razão de sua raiva, se sentia culpada a ponto
de quase chorar. Do nada, corria e abraçava a mãe e fazia em Valentina todos os
carinhos que ela mais gostava. As duas sempre aceitavam os carinhos, que eram
na verdade, pedidos de desculpa.
Até que um dia, Valentina não
aceitou seu pedido de desculpas mudo e fugiu. A gatinha passou o dia inteiro
fora, na rua, e Antônia sofrendo de preocupação, achando que o cachorro do seu
Rantzau podia machucá-la. À noitinha, quando os adultos já começavam a tirar as
cadeiras de balanço da calçada e se despedir dos vizinhos, lá se viu Valentina dobrando
a esquina. Vinha devagarzinho, quase encostando o pelo na parede das casas e o
olhar no chão. Antônia soltou sua cadeirinha de balanço e correu para encontrar
sua mais querida amiga. Apertou tanto a pobre gata, que ela gemeu. Vasculhou
seu pequeno corpo procurando qualquer machucadinho e sentiu alívio quando não
encontrou.
— Que bom que você voltou Valentina! Que bom! – a menina
rodopiava na calçada, levantando a gatinha à altura das estrelas, para depois
apertá-la contra o peito – Você comeu? O que você bebeu? Por que você fez isso?
Eu fiquei tão triste achando que você tinha se machucado... me desculpe,
Valentina, me desculpe...
Entraram em casa e foram direto
para o quintal. Antônia trouxe água, comida, leite, tudo o que Valentina mais
gostava. A gatinha comeu e bebeu, mas não demonstrou que também estava feliz.
Depois que terminou se afastou da menina e se aninhou sozinha perto da parede.
Antônia sentiu aquela rejeição como uma queda. Duas lágrimas escorreram pelas
bochechas sardentas.
— Eu sei Valentina, você ainda está triste comigo, não é? Eu sei. – a
gata que olhava vagamente para o fundo do quintal, virou-se para a menina e
disse sim em silêncio – Me desculpe, Valentina. Mas também, por que você nunca
aparece quando eu mais preciso? – Valentina se assustou – É, nem você nem minha
mãe, nunca aparecem quando eu mais preciso.
Ainda sem entender, a gatinha se levantou e se aproximou de Antônia.
Sentou diante dela pedindo explicações. Antônia nem viu que sua amiga tinha se
aproximado. Sentada no chão do alpendre, apertando as pernas contra o peito,
chorava baixinho, como sempre fazia nas noites de pesadelo. Valentina não
entendia a razão do choro, mas percebia que a menina estava sofrendo de
verdade. Mesmo com o orgulho ferido, se enroscou em Antônia, que recebeu aquele
carinho com surpresa.
— Valentina, por que você nunca vem me salvar quando eu tenho pesadelo
com o cachorro do seu Rantzau?
— Mas eu nunca soube que você tinha pesadelo com aquele cachorro! Como
eu poderia te salvar? Como eu posso entrar no teu sonho? Me diz!
— Não sei, não sei. Mas você nunca vem me salvar. Eu estou sozinha na
rua e aparece aquele cachorrão peludo querendo me morder. Eu corro, corro,
corro e não adianta nada. Ele sempre me alcança. E o pior é que ele só anda. Eu
corro, ele anda e ainda assim me alcança. Aí quando ele vai me morder e abre a
boca enorme pra mim, eu acordo assustada. Morrendo de medo. Nem quando eu
acordo você vem ficar comigo. Nem minha mãe vem. Minha mãe também não vem.
As palavras saiam lavadas com lágrimas da alma de Antônia. A gatinha
ficou andando de um lado para o outro tentando explicar que ela jamais iria
adivinhar que a menina tinha esses pesadelos, que Antônia devia ter contado
antes, que essas sensações a gente precisa dividir, que... isso, que... aquilo.
Antônia adormeceu no chão, de tanto chorar. Naquela noite, Valentina
não fechou o olhou, nem mesmo depois que o pai da menina a levou para a cama. Uma
noite de insônia felina. Deitada ao seu lado, qualquer movimento era suficiente
para a gata levantar a cabeça atenta. Mas aquela não foi uma noite de pesadelo.
Na manhã seguinte, Antônia foi acordada pela mãe, como de costume: com cócegas
nos pés. A menina acordava primeiro o sorriso, depois os olhos. Valentina,
coitada, só dormiu quando o sol já tinha chegado.
— Dormiu bem, filha? – embora não fosse, aquela pergunta parecia nova.
— Dormi sim, mamãe. Essa noite nem sonhei com o cachorro do seu
Rantzau.
— E desde quando você sonha com ele? Como é esse sonho? – nessa hora,
Valentina ficou atenta e torcendo para que Antônia conseguisse contar o
pesadelo também para mãe. Ela não sabia muito bem porque, mas achava que era
bom contar um sonho ruim, para que ele não acontecesse de verdade. Quer dizer,
para que a verdade dele, não passasse de sonho. E naquela manhã de sábado a mãe
de Antônia conheceu um pouco mais sobre sua pequena.
Os dias caminharam e nem sombra
do cachorro do seu Rantzau no sono de Antônia. Foi aí que numa noite dessas
qualquer... lá estava Antônia correndo apavorada pela rua deserta e atrás dela
o cachorro do seu Rantzau. A menina corria o mais rápido que podia para
alcançar a porta de casa e entrar. Quanto mais ela corria mais a porta ficava
longe e mais perto chegava o cachorro. Ninguém na rua, ninguém para salvá-la.
Antônia corria, mas o chão embaixo dos seus pés parecia não mudar. E o cachorro
se aproximando, e o cachorro cada vez mais perto. Ai a menina parou, respirou o
mais fundo que pôde e gritou.
— Mãããããããããããe!!! – Valentina, acordou de um pulo e nem bem Antônia
abriu os olhos já se enroscava no seu rosto. Sua mãe também foi ligeira e logo
acendeu a luz do quarto.
— O que foi minha filha? – Antônia, de olhos arregalados, apertava
Valentina contra o peito. Com os olhos cheios d’água e um sorrisinho nascendo
no canto da boca, a menina respondeu:
— Foi o sonho, mãe, aquele sonho. – Antônia começou a contar o
pesadelo com detalhes de sons, cores e cheiros. A mãe e Valentina escutaram atentamente
a história.
— Mas foi sonho, filha.
— Só um sonho, Antônia.
— É... ainda bem, né? Foi só um sonho...
E ali ficaram as três abraçadas, sem precisar dizer nada. Pelas
frestas do telhado entravam os primeiros raios de sol amanhecendo outro sábado.
Depois daquela noite, ainda outras vieram em que Antônia teve novamente
o pesadelo, mas não foram muitas. Agora, o que nunca mais lhe faltou foi
coragem para pedir ajuda.
Oi Karê, seu teste prende a atenção, um suspense muito gostoso. E como sempre os seus textos são muito bons. Gostei.
ResponderExcluirOi Ná, que bom essa sua visita, querida!!! Muito obrigada.
ExcluirBeijo.
De Zulmira Nondas: Oi Karenina!! Muito linda essa crônica!! Estou invadindo seu espaço porque gosto muito de ler essas histórias. Na minha infância sempre gostei de ouvir as histórias, com por exemplo, a do "Reino do Pássaro Pena", que por sinal, eu contava muito essa história para você, lembra!? Um abraço.
ResponderExcluirOi minha querida!! O Eflal me mandou essa história. É uma delícia compartilhar essas histórias com vocês. E mais legal ainda é ler seus comentários. Eles só me animam. A próxima crônica que vou postar, acho que você vai gostar também. Passe sempre! Um beijo.
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