Voltar à casa da mãe é sempre um novo encontro com pedaços esquecidos
ou desconhecidos da gente. De férias na casa da minha e revirando objetos
velhos, me vêm à memória lembranças que eu não sei se foram inventadas ou
vividas. Também, que diferença isso faz? Uma visita aos meus velhos tempos revela que, sem muito esforço,
me lembro dos meus sapatos como registros da passagem do tempo pela minha vida.
Ai vem a pergunta mais óbvia, talvez: demorei ou tive algum problema para começar
a andar? Médio. Segundo minha mãe, andei a primeira vez no dia do meu
aniversário de 1 ano, sem nenhuma dificuldade. Mas aí eu levei uma queda, que
pelo visto, me deixou com medo da bipedia. Só dois meses depois é que voltei a
me aventurar a andar com a cabeça mais perto das nuvens. Daí por diante não
parei mais de andar por este mundo de meu deus.
Dos pés de 3 anos a mainha guardou dois pares de sapatos. Um tamanco branco
de madeira e couro com a Minnie desenhada no rosto e uma sandalinha de enfiar o
pé, com o rosto todo furadinho. E parece que a escolha não foi à toa, porque o
desgaste da madeira do tamanco fala que ele foi um dos xodós daqueles meus pés
pequenos. Diz a mamãe que eu gostava de viver nas alturas. Depois desses ficou fácil marcar o tempo com os sapatos da escola.
Primeiro foi uma sandália que eu usei no Jardim II e na Alfabetização. Devia
ser Ortopé de tão bonitinha. Melhor que bonitinha é que ela era muito
confortável. Tanto, que muito depois encontrei a tia Artemis com uma delas e só
não roubei porque o pé dela era menor que o meu. Capaz que era sandália de
criança mesmo.
Depois das sandálias vieram os Kichutes, que eram comprados um
pouco maior que o pé, para durar mais tempo. Acho que todo mundo gostava do
Kichute. Também se não gostasse era perda de tempo porque a farda especificava
aquele sapato. Nem era qualquer tênis preto, nem qualquer meia branca. A Geralda
ficava vigiando a nossa entrada no Colégio e qualquer inovação era entendida
com um “meia volta volver”! A meia não podia ter um pinguinho de outra cor. Mas
o inevitável eram aqueles cinquenta tons de cinza depois da suadeira do
recreio. Sim porque além do sapato soltar uma tinta lascada o cadarço era enorme.
Tão grande, que era preciso criar estilos de amarrar o sapato sem deixar metros
de cadarço arrastando pelo chão. O mais comum, era fazer as duas pontas se
cruzarem atrás do tornozelo e darem quantas voltas fossem necessárias para
encurtar as sobras. Claro que o número de voltas dependia da grossura do tornozelo
do freguês. Tudo isso sobre a meia que deveria ser impecavelmente branca. Uma
variação sobre o mesmo tema era fazer o
cadarço dar voltas por baixo do sapato. Mas isso já era avançado. Só para os
mais velhos.
Apesar de horríveis, aos meus olhos de hoje, naquela época, os Kichutes eram lindos e sustentaram quase todos os passos da minha infância e
adolescência. Quase todos mesmo. Porque como eu não tinha outro tênis eram eles que eu usava até mesmo nas ocasiões em que se podia vestir à paisana. Mas aí veio
meu padrinho, num daqueles anos, e me perguntou o que eu queria ganhar de
presente de aniversário. Não tive dúvida: um tênis. O que ele me deu foi o tênis
mais lindo que já tive até hoje. Um Adidas azul marinho, lindo de morrer e que
passou a ser o meu xodó. Nem sei por quanto tempo o guardei na própria caixa,
tomando o cuidado de limpá-lo antes. Aquele sim, me deixava com a cabeça nas
nuvens!
Um tempo depois, o colégio começou a aceitar qualquer sapato
preto e depois qualquer tênis. Nisso eu já estava na sexta ou sétima série e lembro-me de ter ido várias vezes à aula, com o Bamba
branco que a Sandra tinha ganhado do namorado. Tenho até uma foto segurando o
troféu que ganhamos naqueles Jogos Cimariano, toda pronta para ir à escola, com aqueles Bambas nos pés. era como se eu calçasse asas! Esse foi o terceiro tênis que entrou na minha vida. E nem meu era! Mas sua dona, que ajudava a mamãe nas tarefas da casa há muito
tempo, me emprestava sem pena. A mainha era que dizia que eu ia estragar o tênis
alheio e etc e tal. Como eu gostei dos Bambas da Sandra!
De todos os aspectos que desenham a minha relação com meus
sapatos, não tenho a menor dúvida de que é o conforto o que mais se destaca. Porque
definitivamente, não sou do tipo que coleciona sapatos, nem tenho fetiches com
os pés de seu ninguém. Portanto não posso negar que é o conforto que meus
sapatos me proporcionam o que me prende a eles por tanto tempo. Raramente deixo
de usar um sapato confortável só porque está velho. Pelo contrário, aí é que eu
uso! Já tentei comprar sapatos porque combinam melhor com roupa tal, porque
ninguém pode viver sem um pretinho básico, porque é a última tendência, enfim.
Experimento, experimento, gosto muito do que vejo. Mas se eu não respeitar o
que dizem meus pés, logo de cara, é besteira. Todas as vezes que fiz isso,
quando cheguei em casa e experimentei novamente o sapato, o que na loja era uma
impressão, em casa virou um fato consumado. E aí o jeito era trocar ou passar
pra frente.
E nessa brincadeira, já tentei usar uns quatro pares de
Allstar. Acho bem bonitinho o modelo, mas meus pés não se enganam. E já me
prometi mil vezes não comprar sapato sem dar ouvidos aos meus pés. Mas parece
que na hora da compra, a voz deles fica baixinha, baixinha. Ou então sou eu que dou
um jeito de não escutar e acabo comprando, para no momento seguinte admitir que não
vou usar. E olha que antes era até pior, porque eu usava as desgraças fazendo
de conta que nada estava acontecendo. De uns tempos pra cá é que eu tenho
admitido o erro antes mesmo de castigar ainda mais os pés. Aí, primeiro uso em
casa com meia para ver se alargam um pouco, fico me convencendo de que é assim
mesmo e que uma hora eu vou me acostumar. Tudo inutilezas. No fim, meus pés falam
mais alto e não se rendem a sapatos desconfortáveis por nada nesse mundo. Quem
sai ganhando é minha prima que calça o mesmo número que eu e já ouviu a cantilena
uma infinidade de vezes: Prima, essa é a última. Ela ri, agradece e diz que
esperava que eu nunca cumpra a promessa.
E no fim, meus pés é que têm razão. Porque para eu
andar com a cabeça nas nuvens eles é que tem que pisar firme no chão. Firme e
com conforto!
Uma graça esse texto, adorei as tuas "inutilezas"...rs. E estou eserando ver a tua foto com o bamba da Sandra....
ResponderExcluirbeijos
bel
Ha ha ha ha ha, o pior, Bel, é que esses dias nós tivemos que olhar fotos antigas para um evento do qual participou meu irmão e essa tá lá! Você tá bem, querida? Obrigada pela visita. Um beijo.
ExcluirLembrei de coisas da infância que já havia esquecido. Também me fez lembrar de uma fase bem dolorida na minha vida. Depois de longos anos apanhando descobri recentemente que pra não ter unhas encravadas é simples, basta usar um número acima do seu. Nunca mais sofri com esse problema. O texto é uma delícia!
ResponderExcluirOlha que esse remédio eu não conhecia, viu! Que bom que você gostou do texto. Passe sempre por aqui e deixe suas flores. Elas são sempre lindas. Um beijo, querido.
ExcluirMuito lindo o seu texto, nos remete a infância. Adorei. bjs
ResponderExcluirOi Ná, que bom ler seu comentário! Assim me sinto por aí também. Obrigada pela visita. Um beijo.
Excluir