Olá, como vai? Sei que você vai dizer: já não era sem tempo, heim, dona Anna Karenina! Tem toda razão. Para quebrar o jejum de postagens, mais uma Crônica de Balaio. Boa viagem!
Depois de alguns dias na encantada
San Pedro de Atacama, volto a Santiago para as últimas cinco noites. Já sabia
tudo o que queria fazer, ver, comprar, experimentar. Incluindo o bar do hotel
onde estava hospedada. Don Rodrigo. Aliás, muitas histórias para o nome do bar.
A primeira que ouvi é que Don Rodrigo foi uma personagem de um cartunista muito
famoso por lá, que era amigo do dono do hotel. A outra, contada por um dos
rapazes do hotel é que o próprio dono era desenhista e daí criou essa
personagem. Não sei qual era a verdadeira, mas também não faz a menor
diferença. Fato é que durantes as primeiras noites eu ficava ouvindo o piano lá
do meu quarto, com vontade de desce, mas com uma preguiça danada de me mexer
naquele frio. Até que na sexta, como eu estaria mesmo na rua vindo de uma
apresentação de balé ali perto, senti que era a noite para visitar o bar. Antes
não tivesse sentido nada. Preciso rever essa minha intuição.
Dobrei a esquina e uns dez passos
depois, logo estava a porta aberta. Entrei olhando no horizonte e observando se
havia alguma mesa livre. Naquele horário, era impossível. Aí caminhei até a
barra. Afinal num bar, nada mais cool
do que ir direto pra barra. Pois é, mas até a barra estava lotada. Mas, como os
frequentadores de bares são sempre solícitos, às vezes até demais, rapidinho
encontraram um lugarzinho para mim. Tudo bem que era ocupando metade do espaço
dos garçons, que já não conseguiam nem apoiar a bandeja no balcão. Bobagem.
Pedi a carta, mas já sabia que queria um pisco. Pisco, então. Óbvio que eu
estava hipnotizada por aquela atmosfera e me sentia autônoma, dona de mim!
Imagina. Primeiro, viajando sozinha, decidindo e resolvendo tudo! Evidente que
nem sempre a prática era assim, como na escrita, mas... Depois, estar ali,
vindo do teatro, caminhando pelo bairro numa noite linda de morrer e podendo
finalmente ouvir de perto aquela música tão agradável.
Quando os ouvidos se aclimataram ao
ambiente, pude perceber que a música não era bem aquela. Procurei o piano e o
que vi se aproximava mais de uma cena de filme de faroeste do que de um
barzinho da badalada Santiago no século XXI. Tudo bem vai. Aí chegou meu pisco
e já no primeiro gole eu agradeci pelo copo ser tão pequenininho. Saúde,
Anninha! Só depois do gole foi que percebi que a mão direita que me serviu
tinha apenas três dedos. Faltavam-lhe o indicador e o médio. Mas isso não era
problema nem pra escrever, quanto mais para preparar tragos dos mais simples aos mais sofisticados. Don Domingos era de
pouquíssimas palavras e muitas caretas. Tanto que as perguntas que eu lhe fazia
eram respondidas, ou pela moça do caixa, ou pelo vizinho de balcão. Antes eu
não tivesse perguntado nada. Mas eu me aguento? Senão, não sou eu.
Resultado. Meu vizinho não parou de
conversar e quando parava fazia uma zoada que parecia que ele estava roncando.
Estranho, mas era mesmo um ronco. Talvez por ele ser bem gordo, a respiração
ficava comprometida e o forçava a ressonar mesmo acordado. Quando a música
agradava, ele bailava sozinho de um lado para o outro segurando desequilibradamente
o copo de whisky. Foi aí que o caldo entornou. Detalhe, entornou mais ainda
quando ele soube que sua vizinha de balcão era brasileira. Pra quê? Foi direto
ao pianista, quer dizer, direto em zigue-zague, e pediu uma música brasileira.
Ziguezagueando pelo pequenino espaço entre as mesas, voltou animadíssimo e
contou seu pedido. Eu, idiota, fiquei esperando os primeiros de tons de Garota
de Ipanema. Afinal essa já foi a música mais executada no mundo. Aqui não seria
diferente. Pois foi. Definitivamente aquele não era o pianista das noites
anteriores.
Eu não sabia se ria ou se chorava
quando ele começou a tocar Michel Teló na minha humilde residência. Mas o pior
ainda estava por vir e a única opção era chorar. Meu vizinho me puxou pelo
braço e com uma destreza inacreditável, me acomodou do lado direito de sua
imensa barriga e saiu nos deslocando na direção das mesas. Não tenho dúvidas de
que esta foi a noite em que mais senti vergonha na minha vida. Ah, e a dança
foi apenas a azeitona do gim. Foi inútil, no meu espanhol elogiado por uns e
escrachado por outros, pedir que parasse, que eu não sabia bailar, que essa
música eu não conhecia, que eu não acreditava em Papai Noel, que os argentinos
são muito mais legais que os chilenos. Nada. Nem dizer que o ceviche é uma
invenção peruana e que eles fazem os melhores do mundo. Nada. Nada fez aquele
bêbado me largar de mão. Ah, sim, ele parou. Quando acabou a música. Mas antes
disso, eu me vi esbarrando uma sem vezes, nas pessoas sentadas, nos
companheiros do balcão, nos garçons e suas bandejas. Enfim, paramos.
Quer dizer, na verdade fomos
parados. Numa de suas piruetas, aliás seu passo favorito, paramos com minhas
costas numa bandeja que supostamente serviria seis chopes de meio litro. Pois é.
Na tentativa de evitar o choque o garçom tinha levantado a bandeja o suficiente
para os copos ficarem à altura da minha cabeça. Ainda bem que ele foi hábil
para não deixar nenhuma caneca de meio litro cair bem no meu cocuruto. Eu que
amo os banhos, desse não gostei muito, não. A cerveja fria escorria entre o
sobretudo e as outras camadas de roupa, depois de molhar bem minha cabeça. O
pior é que o louco que me conduzia na minha humilde residência nem percebeu e
continuou dançando. Se é que se pode chamar aquilo de dança. E eu? O que um
peido para quem está cagado?
Se ele não tinha me escutado antes,
por que iria me escutar agora? Continuei sem saber se chorava, gargalhava,
chutava seu saco muito bem protegido pela graxa abdominal, ou fazia de conta
que nada tinha acontecido. A última opção era impossível, já que todos nos bar
nos olhavam e, com certeza, com pena de mim. Enfim, Michel Teló parou e meu
companheiro de dança me fez uma reverência em agradecimento. Aplauso geral. Alguém
não sabe pelo que eles aplaudiam? O garçom, coitado, não sabia se chamava o
Samu, que no Chile também é Samu, ou me acudia diretamente com seu paninho
molhado. Aquele de limpar as mesas. Foi ele que me sugeriu tirar o sobretudo. Concordei.
Só na barra é que meu vizinho se deu conta da merda que tinha feito. Disse que
não teve a intenção, que eu o desculpasse, que tinha sido um idiota,
desajeitado. Enfim, concordei explicitamente com sua culpa e pedi outro pisco
ao seu Domingos, que dessa vez me dirigiu a palavras pra dizer que essa era um
boa história pra levar pro Brasil. De novo concordei. Foi aí que ele perguntou
se eu aceitava umas gotinhas de angostura. Angostura? Me lembrei de que já
tinha experimentado isso antes e de que era amargo que só a peste. Pior do que
estava, não podia ficar. Se ele entendesse um bom português eu teria dito: pois
lasque essa angostura aí, seu menino! Mas, me restringi a balançar a cabeça
positivamente.
Pois não é que a tal angostura
cortou o ácido do limão e deixou minha bebida suave como um veludo!?
Inacreditável! Depois desse gole, meu vizinho de banho, que voltava das mil e
uma desculpas com o garçom me disse que era dono de uma lavanderia e que amanhã
bem cedo passaria pessoalmente para buscar minhas roupas e que as devolveria no
fim da tarde. Ah, e que eu ficasse à vontade para mandar todas as outras que eu
quisesse. Pobre homem. Agora eu que estava com pena dele. Mas bastava sentir o
frio da roupa molhada que a pena se transformava em raiva. Fazer o que? De
qualquer jeito o melhor mesmo era esperar a roupa secar um pouco antes de sair
dali. Retomamos a conversa, eu e meu vizinho, com a promessa de que jamais iria
pedir outra música, muito menos iria passar por sua cabeça tirar nenhuma outra
mulher, desse planeta, para dançar naquele estado. Ele me garantiu. No fim, do
jeito que a angostura podia suavizar a acidez da bebida, também aquela vergonha
iria servir de matéria prima para algum propósito. Saúde!
Saúde mesmo Kare, deu uma crônica muito gostosa de ser lida. Até te imagino rodopiando pelo bar lotado. Muito divertida. Saúde!
ResponderExcluirbeijos
bel
Que bom que você gostou Bel. Claro que ela já passou pelo crivo da Margareth e do Gilsão. Quando você volta pra gente?
ExcluirAchei que vc foi de uma delicadeza ímpar, pois, por muito menos, eu teria desmaiado de vergonha, ou teria dado uns paus no cabra. Está. Me senti lá!
ResponderExcluirVocê não tem ideia de como é bom saber que alguém foi transportado por um texto que você escreveu. É demais, Toni!! Muito obrigada. Um beijo.
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