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quinta-feira, 6 de junho de 2013

Crônicas de Santiago - I

Olá, como vai? Sei que você vai dizer: já não era sem tempo, heim, dona Anna Karenina! Tem toda razão. Para quebrar o jejum de postagens, mais uma Crônica de Balaio. Boa viagem!


            Depois de alguns dias na encantada San Pedro de Atacama, volto a Santiago para as últimas cinco noites. Já sabia tudo o que queria fazer, ver, comprar, experimentar. Incluindo o bar do hotel onde estava hospedada. Don Rodrigo. Aliás, muitas histórias para o nome do bar. A primeira que ouvi é que Don Rodrigo foi uma personagem de um cartunista muito famoso por lá, que era amigo do dono do hotel. A outra, contada por um dos rapazes do hotel é que o próprio dono era desenhista e daí criou essa personagem. Não sei qual era a verdadeira, mas também não faz a menor diferença. Fato é que durantes as primeiras noites eu ficava ouvindo o piano lá do meu quarto, com vontade de desce, mas com uma preguiça danada de me mexer naquele frio. Até que na sexta, como eu estaria mesmo na rua vindo de uma apresentação de balé ali perto, senti que era a noite para visitar o bar. Antes não tivesse sentido nada. Preciso rever essa minha intuição.
            Dobrei a esquina e uns dez passos depois, logo estava a porta aberta. Entrei olhando no horizonte e observando se havia alguma mesa livre. Naquele horário, era impossível. Aí caminhei até a barra. Afinal num bar, nada mais cool do que ir direto pra barra. Pois é, mas até a barra estava lotada. Mas, como os frequentadores de bares são sempre solícitos, às vezes até demais, rapidinho encontraram um lugarzinho para mim. Tudo bem que era ocupando metade do espaço dos garçons, que já não conseguiam nem apoiar a bandeja no balcão. Bobagem. Pedi a carta, mas já sabia que queria um pisco. Pisco, então. Óbvio que eu estava hipnotizada por aquela atmosfera e me sentia autônoma, dona de mim! Imagina. Primeiro, viajando sozinha, decidindo e resolvendo tudo! Evidente que nem sempre a prática era assim, como na escrita, mas... Depois, estar ali, vindo do teatro, caminhando pelo bairro numa noite linda de morrer e podendo finalmente ouvir de perto aquela música tão agradável. 
            Quando os ouvidos se aclimataram ao ambiente, pude perceber que a música não era bem aquela. Procurei o piano e o que vi se aproximava mais de uma cena de filme de faroeste do que de um barzinho da badalada Santiago no século XXI. Tudo bem vai. Aí chegou meu pisco e já no primeiro gole eu agradeci pelo copo ser tão pequenininho. Saúde, Anninha! Só depois do gole foi que percebi que a mão direita que me serviu tinha apenas três dedos. Faltavam-lhe o indicador e o médio. Mas isso não era problema nem pra escrever, quanto mais para preparar tragos dos mais simples aos mais sofisticados. Don Domingos era de pouquíssimas palavras e muitas caretas. Tanto que as perguntas que eu lhe fazia eram respondidas, ou pela moça do caixa, ou pelo vizinho de balcão. Antes eu não tivesse perguntado nada. Mas eu me aguento? Senão, não sou eu.
            Resultado. Meu vizinho não parou de conversar e quando parava fazia uma zoada que parecia que ele estava roncando. Estranho, mas era mesmo um ronco. Talvez por ele ser bem gordo, a respiração ficava comprometida e o forçava a ressonar mesmo acordado. Quando a música agradava, ele bailava sozinho de um lado para o outro segurando desequilibradamente o copo de whisky. Foi aí que o caldo entornou. Detalhe, entornou mais ainda quando ele soube que sua vizinha de balcão era brasileira. Pra quê? Foi direto ao pianista, quer dizer, direto em zigue-zague, e pediu uma música brasileira. Ziguezagueando pelo pequenino espaço entre as mesas, voltou animadíssimo e contou seu pedido. Eu, idiota, fiquei esperando os primeiros de tons de Garota de Ipanema. Afinal essa já foi a música mais executada no mundo. Aqui não seria diferente. Pois foi. Definitivamente aquele não era o pianista das noites anteriores.
            Eu não sabia se ria ou se chorava quando ele começou a tocar Michel Teló na minha humilde residência. Mas o pior ainda estava por vir e a única opção era chorar. Meu vizinho me puxou pelo braço e com uma destreza inacreditável, me acomodou do lado direito de sua imensa barriga e saiu nos deslocando na direção das mesas. Não tenho dúvidas de que esta foi a noite em que mais senti vergonha na minha vida. Ah, e a dança foi apenas a azeitona do gim. Foi inútil, no meu espanhol elogiado por uns e escrachado por outros, pedir que parasse, que eu não sabia bailar, que essa música eu não conhecia, que eu não acreditava em Papai Noel, que os argentinos são muito mais legais que os chilenos. Nada. Nem dizer que o ceviche é uma invenção peruana e que eles fazem os melhores do mundo. Nada. Nada fez aquele bêbado me largar de mão. Ah, sim, ele parou. Quando acabou a música. Mas antes disso, eu me vi esbarrando uma sem vezes, nas pessoas sentadas, nos companheiros do balcão, nos garçons e suas bandejas. Enfim, paramos.
            Quer dizer, na verdade fomos parados. Numa de suas piruetas, aliás seu passo favorito, paramos com minhas costas numa bandeja que supostamente serviria seis chopes de meio litro. Pois é. Na tentativa de evitar o choque o garçom tinha levantado a bandeja o suficiente para os copos ficarem à altura da minha cabeça. Ainda bem que ele foi hábil para não deixar nenhuma caneca de meio litro cair bem no meu cocuruto. Eu que amo os banhos, desse não gostei muito, não. A cerveja fria escorria entre o sobretudo e as outras camadas de roupa, depois de molhar bem minha cabeça. O pior é que o louco que me conduzia na minha humilde residência nem percebeu e continuou dançando. Se é que se pode chamar aquilo de dança. E eu? O que um peido para quem está cagado?
            Se ele não tinha me escutado antes, por que iria me escutar agora? Continuei sem saber se chorava, gargalhava, chutava seu saco muito bem protegido pela graxa abdominal, ou fazia de conta que nada tinha acontecido. A última opção era impossível, já que todos nos bar nos olhavam e, com certeza, com pena de mim. Enfim, Michel Teló parou e meu companheiro de dança me fez uma reverência em agradecimento. Aplauso geral. Alguém não sabe pelo que eles aplaudiam? O garçom, coitado, não sabia se chamava o Samu, que no Chile também é Samu, ou me acudia diretamente com seu paninho molhado. Aquele de limpar as mesas. Foi ele que me sugeriu tirar o sobretudo. Concordei. Só na barra é que meu vizinho se deu conta da merda que tinha feito. Disse que não teve a intenção, que eu o desculpasse, que tinha sido um idiota, desajeitado. Enfim, concordei explicitamente com sua culpa e pedi outro pisco ao seu Domingos, que dessa vez me dirigiu a palavras pra dizer que essa era um boa história pra levar pro Brasil. De novo concordei. Foi aí que ele perguntou se eu aceitava umas gotinhas de angostura. Angostura? Me lembrei de que já tinha experimentado isso antes e de que era amargo que só a peste. Pior do que estava, não podia ficar. Se ele entendesse um bom português eu teria dito: pois lasque essa angostura aí, seu menino! Mas, me restringi a balançar a cabeça positivamente.
            Pois não é que a tal angostura cortou o ácido do limão e deixou minha bebida suave como um veludo!? Inacreditável! Depois desse gole, meu vizinho de banho, que voltava das mil e uma desculpas com o garçom me disse que era dono de uma lavanderia e que amanhã bem cedo passaria pessoalmente para buscar minhas roupas e que as devolveria no fim da tarde. Ah, e que eu ficasse à vontade para mandar todas as outras que eu quisesse. Pobre homem. Agora eu que estava com pena dele. Mas bastava sentir o frio da roupa molhada que a pena se transformava em raiva. Fazer o que? De qualquer jeito o melhor mesmo era esperar a roupa secar um pouco antes de sair dali. Retomamos a conversa, eu e meu vizinho, com a promessa de que jamais iria pedir outra música, muito menos iria passar por sua cabeça tirar nenhuma outra mulher, desse planeta, para dançar naquele estado. Ele me garantiu. No fim, do jeito que a angostura podia suavizar a acidez da bebida, também aquela vergonha iria servir de matéria prima para algum propósito. Saúde!

4 comentários:

  1. Saúde mesmo Kare, deu uma crônica muito gostosa de ser lida. Até te imagino rodopiando pelo bar lotado. Muito divertida. Saúde!
    beijos
    bel

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    1. Que bom que você gostou Bel. Claro que ela já passou pelo crivo da Margareth e do Gilsão. Quando você volta pra gente?

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  2. Achei que vc foi de uma delicadeza ímpar, pois, por muito menos, eu teria desmaiado de vergonha, ou teria dado uns paus no cabra. Está. Me senti lá!

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  3. Você não tem ideia de como é bom saber que alguém foi transportado por um texto que você escreveu. É demais, Toni!! Muito obrigada. Um beijo.

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