Num certo sentido, posso
dizer que já morei num zoológico. Sim porque houve época que lá em casa moravam
conosco dois periquitos, um gato, um cachorro, um casal de periquitinhos
australianos, um tiú, uma colmeia, uma cobra de veado e um jabuti. Sem contar
aqueles que não eram escolhidos por nós, mas que por ali viviam. As tarefas com
o zoológicos eram bem definidas: o papai inventava e a mamãe cuidava. Uma
divisão muito justa do trabalho! Como éramos ainda pequenos para certas
tarefas, estávamos livres do que estivesse além de alimentar os bichinhos e nos
divertir com eles. É bem verdade que com a cobra a diversão era à distância.
Jogávamos pedrinhas ou outros objetos pequenos até que ela se irritasse o
suficiente para fazer um barulho parecendo um mugido. Que ruindade.
Meu casal de periquitinhos
australianos era tão lindinho, tão verdinho que não contente em observá-los,
quis acariciar nas mãos. Para quê! Na segunda seção de carinho eles voaram
lentos por sobre o muro. De certo foram parar na boca do gato mais próximo. Que
tristeza. Ah, e tinha mais. Um sem número de pintinhos coloridos que tentávamos
criar, esperando que eles chegassem a galinhas e galos rosa choque, azul ou
verde limão. Nunca soubemos o que era a crise de ver na panela um bicho de
estimação. A longevidade deles não era assim invejável. Aliás, nosso sofrimento
era sempre pela perda precoce do ente querido. Mas logo outro morador chegaria
e traria a alegria de volta ao nosso zoológico familiar.
Lembro-me muito bem do dia
em que recebemos o jabuti. Sei lá de onde o painho tinha tirado aquele bicho,
mas imediatamente fomos com a cara um do outro. Eu ficava dividida entre querer
que ele fosse enorme o suficiente pra me levar em sua carapaça pelo mundo afora,
em aventuras inimaginável, ou ser tão pequenininha a ponto de, sendo ele
daquele tamanho mesmo, poder me levar em sua carapaça pelo mundo afora em
aventuras inimaginável. Agora, independente do tamanho de quem fosse, era
preciso acelerar aquele bicho. Porque aventura, definitivamente, não combina
com lerdeza. Foi bem no começo de umas férias que ele chegou à nossa
instituição de curta ou média permanência para bichos. Como sempre, demorava
até viajarmos para Fortaleza, e enquanto a hora não chegava, íamos nos virando
como dava. Logo o jabuti, sem nome, passou a ser a novidade naquelas férias.
Coincidentemente, uma prima do papai veio também nos visitar, naquelas férias. E pelas conversas
deles, dava para entender que o papai tinha sido muito querido pelo tio, a quem
chamava de Ti Tôi. A maior contração possível para tio Antônio. E não é que a prima tinha trazido um
presente do Ti Tôi, para o papai. Um objeto metálico redondo, com um rabinho
longo do mesmo material, que guardava não sei que dentro de si. Não vi meu pai
muito entusiasmado com o presente. Ele nunca foi de valores sentimentais, mas
devolveu o objeto ao saquinho de veludo verde, bem bandeira, e levou até seu
quarto. Óbvio que fiquei curiosíssima pra saber que danado era aquilo. Sobre a
cômoda, estava o saquinho, que pequei cuidadosamente, tirei o objeto não
identificado e examinei. Pendurei pelo rabo, ouvi seu barulho e finalmente tive
coragem para abri-lo. Pois não é que ele guardava horas! Ainda não sabia
discerni-las, mas sabia que eram horas! E horas não deixam ninguém se atrasar!
Quem sabe, se eu pudesse convencer o Jabuti a seguir as horas, ele não seria um
pouco mais adequado a um companheiro de aventuras inimagináveis pelo mundo?
Quem sabe?
Duvidei que meu pai me daria
aquela panelinha de horas, mesmo que fosse para um propósito tão nobre e
grandioso. O jeito era esperar o tempo passar e ele esquecer. Deus ajudaria.
Dali a três ou quatro dias, a prima foi embora. Perguntei à Sandra se ela tinha
visto o saquinho verde sobre a cômoda e onde havia guardado. Cá entre nós, estava
tudo dentro do previsto. Na manhã seguinte, aproveitei que minha mãe tinha ido
à rua e realizei a primeira etapa do meu plano: apresentei a caixinha de horas
ao Jabuti.
— Olha só Jabuti, essa é uma caixinha de horas que vai
nos ajudar. Como ajudar em quê? Nas nossas aventuras, claro!
Incrível! Depois da longa preleção
sobre minhas intenções para nós dois e as vantagens que ele teria caso aceitasse
meu convite, fiz a pergunta fatídica. E ele poderia não aceitar? Mas antes de
obrigá-lo, me assegurei de ter explicado tin tin por tin tin.
Impressionantemente ele balançou a cabeça, afirmativo. Era o que eu precisava!
Guardei o presente e fui para trás do meu guarda roupa, finalizar o plano.
Será que era uma boa ideia envolver
meus irmãos naquilo? Não, não. Capaz que iam me atrapalhar. Eles eram muito
infantis para esse tipo de aventura. Tudo planejado, agora era só esperar o
melhor momento. Quem sabe sexta-feira à noite, não seria uma boa? Mamãe iria para
a reunião semanal da Sociedade Feminina, na igreja, e o papai, como não era de
ficar em casa, iria com ela. Perfeito. Depois que eles saíram e meus irmãos
foram jogar bola na rua, comecei a executar o plano. Estava nervosíssima e
tentava me convencer a todo custo de que aquilo não era desobediência. Como
poderia ser, se eles sequer sabiam o que eu estava fazendo? Desobediência era
só quando diziam para gente não fazer e a gente fazia. Não, aquilo
definitivamente não era desobediência. Era... bem, não consegui definir, mas
estava convencida de que desobediência não era. Continuei.
O plano era o seguinte: prender
a caixinha no pescoço do Jabuti, de modo que mesmo quando ele resolvesse entrar
em sua casa, a correntinha pudesse acompanhá-lo. Assim ele entenderia em que
velocidade deveria caminhar para vivermos aquelas aventuras inimagináveis pelo
mundo afora. Com passos firmes e decididos, peguei o objeto, deixei o saquinho
vazio na gaveta e fui na direção da cozinha. Subi numa cadeira para abrir o
ferrolho da folha superior da porta e acendi as luzes do quintal. Ali fiquei
alguns segundos ajoelhada na cadeira olhando a paisagem noturna. Me deu um medo
tão gigante que quase desisti. Aliás, nunca fui um exemplo de coragem, mas meu
intento era tão nobre e importante para a humanidade que eu não poderia me
deixar vencer por um medinho qualquer.
Desci da cadeira, abri o
resto da porta e saí. Puxei o espaldar da cadeira para impedir a porta de abrir
e o nosso cachorro sair correndo. Logo ele chegou perto de mim e me trouxe
segurança. Caminhamos decididos, de queixo erguido e olhar firme até o fundo do
quintal onde ficava o Jabuti. O cachorro quis brincar com ele, mas eu não
deixei dizendo que aquilo não era de brincadeira. Delicadamente bati na porta da
casa do Jabuti que se espreguiçou bem em câmera lenta. Foi aí que sem demora, dei
uma volta com a correntinha pelo pescoço na intenção de passar a caixinha por
dentro da última argola grande ao final da corrente. Impossível. Calculei muito
mal! E agora? Colocar a argola no pescoço do Jabuti? Mesmo assim, era preciso
fixar o corpo do objeto em algum lugar. Não dava pra deixar o Jabuti arrastando
aquilo para lá para cá. O jeito era improvisar. Quase explodi de satisfação
quando lembrei que na sua ida à rua a mainha tinha trazido uma cola bem forte e
que não era para menino mexer, pois colava até dente! Do mesmo jeito que aquilo
não era desobediência, eu não era menino. Portanto, eu poderia usar.
A decisão estava tomada. Eu
colaria a argola no rabo do Jabuti, já que o rabo apenas encaixa na lateral e
colaria a caixa de horas no casco, o mais próximo da cabeça. Quem sabe ele não
conseguiria olhar as horas? Corri até a porta, me esgueirando pela abertura
mínima, fui até a geladeira e voltei num pulo. Segunda dificuldade: a tampa do
tubinho estava difícil demais de sair. Até hoje acho uma ciência a tampa da superbonder. Não hesitei. Prendi a
tampinha entre os dentes tentando girar o tubo. Quando consegui desprender,
apertei o frasco entre os dedos e não deu outra, gotas de superbonder na boca. E daí? Rapidamente e com a destreza dos oito
anos apliquei a cola no casco e no tronco do rabo do bichinho. Primeiro a
argola e depois a caixa. Perfeito! A correntinha ficou bem esticada, o que
evitaria qualquer transtorno no deslocamento em alta velocidade do Jabuti. Eita
satisfação danada! Só que não consegui expressá-la num sorriso, pois estava com
alguns dentes e uma parte dos lábios colados, além de quase todas as cabeças
dos dedos com aquela crosta endurecida. Até parece que isso era problema. Estava
segura de que aquilo era o preço que todo aventureiro deve pagar pelo seu
sonho. Depois de conferir que a cola já tinha cumprido sua missão, entrei em
casa, guardei a cola e fui para meu escritório avaliar a situação. Sucesso
total!
Não tinha dúvida de que na
manhã seguinte, o Jabuti estaria prontíssimo para a primeira ventura inimaginável
pelo mundo afora! Mas, e o que fazer com aquela boca colada? Mesmo que eu não
fosse menino e aquilo não tivesse sido uma desobediência, eu levaria o maior
carão, se minha mãe visse. Grande ideia! Vou tomar banho e dormir. Ninguém vai
ficar sabendo! Que noite de glória! Na manhã seguinte, como era sábado, acordei
sozinha e me espreguicei. Quando me lembrei do que tinha feito na noite
anterior, senti uma alegria maior que eu e sorri. Puxa vida! A noite de bons
sonhos tinha libertado minha boca, mas a prova do crime continuava ali. Que
importava? Levantei num salto e fui correndo para o quintal. Como uma velocista
passei pela cozinha feito um furacão, sem perceber que minha mãe já guardava na
geladeira as compras da feira. Quando me dei conta de que eu mesma me
denunciava, era tarde demais. O serviço estava feito. O Jabuti e sua caixinha
das horas desfilavam lentos pelo quintal. Olhei pra trás e vi minha mãe, parada
no final do alpendre, rindo sozinha daquela marmota.
— Teu pai me perguntou quem tinha feito isso. Na hora eu
disse que não sabia, mas bem que podia ter adivinhado, néra? Ê inventivera!
Corri e
abracei minha mãe como quem pede clemência. Mas também, viesse o que viesse,
isso também seria o preço que todo aventureiro paga pelo seu sonho.
OI Karenina. Minha mãe sorriu muito após ter lido essa historinha!!! Que travessura você fez com o pobre do jabuti!!! Nessa historinha, você demonstrou ser uma criança inteligente, decidida e corajosa, o que mostra realmente o que você é hoje. Parabéns.
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