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quarta-feira, 1 de maio de 2013

Aventuras inimagináveis


Num certo sentido, posso dizer que já morei num zoológico. Sim porque houve época que lá em casa moravam conosco dois periquitos, um gato, um cachorro, um casal de periquitinhos australianos, um tiú, uma colmeia, uma cobra de veado e um jabuti. Sem contar aqueles que não eram escolhidos por nós, mas que por ali viviam. As tarefas com o zoológicos eram bem definidas: o papai inventava e a mamãe cuidava. Uma divisão muito justa do trabalho! Como éramos ainda pequenos para certas tarefas, estávamos livres do que estivesse além de alimentar os bichinhos e nos divertir com eles. É bem verdade que com a cobra a diversão era à distância. Jogávamos pedrinhas ou outros objetos pequenos até que ela se irritasse o suficiente para fazer um barulho parecendo um mugido. Que ruindade.
Meu casal de periquitinhos australianos era tão lindinho, tão verdinho que não contente em observá-los, quis acariciar nas mãos. Para quê! Na segunda seção de carinho eles voaram lentos por sobre o muro. De certo foram parar na boca do gato mais próximo. Que tristeza. Ah, e tinha mais. Um sem número de pintinhos coloridos que tentávamos criar, esperando que eles chegassem a galinhas e galos rosa choque, azul ou verde limão. Nunca soubemos o que era a crise de ver na panela um bicho de estimação. A longevidade deles não era assim invejável. Aliás, nosso sofrimento era sempre pela perda precoce do ente querido. Mas logo outro morador chegaria e traria a alegria de volta ao nosso zoológico familiar.
Lembro-me muito bem do dia em que recebemos o jabuti. Sei lá de onde o painho tinha tirado aquele bicho, mas imediatamente fomos com a cara um do outro. Eu ficava dividida entre querer que ele fosse enorme o suficiente pra me levar em sua carapaça pelo mundo afora, em aventuras inimaginável, ou ser tão pequenininha a ponto de, sendo ele daquele tamanho mesmo, poder me levar em sua carapaça pelo mundo afora em aventuras inimaginável. Agora, independente do tamanho de quem fosse, era preciso acelerar aquele bicho. Porque aventura, definitivamente, não combina com lerdeza. Foi bem no começo de umas férias que ele chegou à nossa instituição de curta ou média permanência para bichos. Como sempre, demorava até viajarmos para Fortaleza, e enquanto a hora não chegava, íamos nos virando como dava. Logo o jabuti, sem nome, passou a ser a novidade naquelas férias. 
Coincidentemente, uma prima do papai veio também nos visitar, naquelas férias. E pelas conversas deles, dava para entender que o papai tinha sido muito querido pelo tio, a quem chamava de Ti Tôi. A maior contração possível para tio Antônio. E não é que a prima tinha trazido um presente do Ti Tôi, para o papai. Um objeto metálico redondo, com um rabinho longo do mesmo material, que guardava não sei que dentro de si. Não vi meu pai muito entusiasmado com o presente. Ele nunca foi de valores sentimentais, mas devolveu o objeto ao saquinho de veludo verde, bem bandeira, e levou até seu quarto. Óbvio que fiquei curiosíssima pra saber que danado era aquilo. Sobre a cômoda, estava o saquinho, que pequei cuidadosamente, tirei o objeto não identificado e examinei. Pendurei pelo rabo, ouvi seu barulho e finalmente tive coragem para abri-lo. Pois não é que ele guardava horas! Ainda não sabia discerni-las, mas sabia que eram horas! E horas não deixam ninguém se atrasar! Quem sabe, se eu pudesse convencer o Jabuti a seguir as horas, ele não seria um pouco mais adequado a um companheiro de aventuras inimagináveis pelo mundo? Quem sabe?
Duvidei que meu pai me daria aquela panelinha de horas, mesmo que fosse para um propósito tão nobre e grandioso. O jeito era esperar o tempo passar e ele esquecer. Deus ajudaria. Dali a três ou quatro dias, a prima foi embora. Perguntei à Sandra se ela tinha visto o saquinho verde sobre a cômoda e onde havia guardado. Cá entre nós, estava tudo dentro do previsto. Na manhã seguinte, aproveitei que minha mãe tinha ido à rua e realizei a primeira etapa do meu plano: apresentei a caixinha de horas ao Jabuti.
— Olha só Jabuti, essa é uma caixinha de horas que vai nos ajudar. Como ajudar em quê? Nas nossas aventuras, claro!
Incrível! Depois da longa preleção sobre minhas intenções para nós dois e as vantagens que ele teria caso aceitasse meu convite, fiz a pergunta fatídica. E ele poderia não aceitar? Mas antes de obrigá-lo, me assegurei de ter explicado tin tin por tin tin. Impressionantemente ele balançou a cabeça, afirmativo. Era o que eu precisava! Guardei o presente e fui para trás do meu guarda roupa, finalizar o plano.
Será que era uma boa ideia envolver meus irmãos naquilo? Não, não. Capaz que iam me atrapalhar. Eles eram muito infantis para esse tipo de aventura. Tudo planejado, agora era só esperar o melhor momento. Quem sabe sexta-feira à noite, não seria uma boa? Mamãe iria para a reunião semanal da Sociedade Feminina, na igreja, e o papai, como não era de ficar em casa, iria com ela. Perfeito. Depois que eles saíram e meus irmãos foram jogar bola na rua, comecei a executar o plano. Estava nervosíssima e tentava me convencer a todo custo de que aquilo não era desobediência. Como poderia ser, se eles sequer sabiam o que eu estava fazendo? Desobediência era só quando diziam para gente não fazer e a gente fazia. Não, aquilo definitivamente não era desobediência. Era... bem, não consegui definir, mas estava convencida de que desobediência não era. Continuei.
O plano era o seguinte: prender a caixinha no pescoço do Jabuti, de modo que mesmo quando ele resolvesse entrar em sua casa, a correntinha pudesse acompanhá-lo. Assim ele entenderia em que velocidade deveria caminhar para vivermos aquelas aventuras inimagináveis pelo mundo afora. Com passos firmes e decididos, peguei o objeto, deixei o saquinho vazio na gaveta e fui na direção da cozinha. Subi numa cadeira para abrir o ferrolho da folha superior da porta e acendi as luzes do quintal. Ali fiquei alguns segundos ajoelhada na cadeira olhando a paisagem noturna. Me deu um medo tão gigante que quase desisti. Aliás, nunca fui um exemplo de coragem, mas meu intento era tão nobre e importante para a humanidade que eu não poderia me deixar vencer por um medinho qualquer.
Desci da cadeira, abri o resto da porta e saí. Puxei o espaldar da cadeira para impedir a porta de abrir e o nosso cachorro sair correndo. Logo ele chegou perto de mim e me trouxe segurança. Caminhamos decididos, de queixo erguido e olhar firme até o fundo do quintal onde ficava o Jabuti. O cachorro quis brincar com ele, mas eu não deixei dizendo que aquilo não era de brincadeira. Delicadamente bati na porta da casa do Jabuti que se espreguiçou bem em câmera lenta. Foi aí que sem demora, dei uma volta com a correntinha pelo pescoço na intenção de passar a caixinha por dentro da última argola grande ao final da corrente. Impossível. Calculei muito mal! E agora? Colocar a argola no pescoço do Jabuti? Mesmo assim, era preciso fixar o corpo do objeto em algum lugar. Não dava pra deixar o Jabuti arrastando aquilo para lá para cá. O jeito era improvisar. Quase explodi de satisfação quando lembrei que na sua ida à rua a mainha tinha trazido uma cola bem forte e que não era para menino mexer, pois colava até dente! Do mesmo jeito que aquilo não era desobediência, eu não era menino. Portanto, eu poderia usar.
A decisão estava tomada. Eu colaria a argola no rabo do Jabuti, já que o rabo apenas encaixa na lateral e colaria a caixa de horas no casco, o mais próximo da cabeça. Quem sabe ele não conseguiria olhar as horas? Corri até a porta, me esgueirando pela abertura mínima, fui até a geladeira e voltei num pulo. Segunda dificuldade: a tampa do tubinho estava difícil demais de sair. Até hoje acho uma ciência a tampa da superbonder. Não hesitei. Prendi a tampinha entre os dentes tentando girar o tubo. Quando consegui desprender, apertei o frasco entre os dedos e não deu outra, gotas de superbonder na boca. E daí? Rapidamente e com a destreza dos oito anos apliquei a cola no casco e no tronco do rabo do bichinho. Primeiro a argola e depois a caixa. Perfeito! A correntinha ficou bem esticada, o que evitaria qualquer transtorno no deslocamento em alta velocidade do Jabuti. Eita satisfação danada! Só que não consegui expressá-la num sorriso, pois estava com alguns dentes e uma parte dos lábios colados, além de quase todas as cabeças dos dedos com aquela crosta endurecida. Até parece que isso era problema. Estava segura de que aquilo era o preço que todo aventureiro deve pagar pelo seu sonho. Depois de conferir que a cola já tinha cumprido sua missão, entrei em casa, guardei a cola e fui para meu escritório avaliar a situação. Sucesso total!
Não tinha dúvida de que na manhã seguinte, o Jabuti estaria prontíssimo para a primeira ventura inimaginável pelo mundo afora! Mas, e o que fazer com aquela boca colada? Mesmo que eu não fosse menino e aquilo não tivesse sido uma desobediência, eu levaria o maior carão, se minha mãe visse. Grande ideia! Vou tomar banho e dormir. Ninguém vai ficar sabendo! Que noite de glória! Na manhã seguinte, como era sábado, acordei sozinha e me espreguicei. Quando me lembrei do que tinha feito na noite anterior, senti uma alegria maior que eu e sorri. Puxa vida! A noite de bons sonhos tinha libertado minha boca, mas a prova do crime continuava ali. Que importava? Levantei num salto e fui correndo para o quintal. Como uma velocista passei pela cozinha feito um furacão, sem perceber que minha mãe já guardava na geladeira as compras da feira. Quando me dei conta de que eu mesma me denunciava, era tarde demais. O serviço estava feito. O Jabuti e sua caixinha das horas desfilavam lentos pelo quintal. Olhei pra trás e vi minha mãe, parada no final do alpendre, rindo sozinha daquela marmota.
— Teu pai me perguntou quem tinha feito isso. Na hora eu disse que não sabia, mas bem que podia ter adivinhado, néra? Ê inventivera!
            Corri e abracei minha mãe como quem pede clemência. Mas também, viesse o que viesse, isso também seria o preço que todo aventureiro paga pelo seu sonho. 

Um comentário:

  1. OI Karenina. Minha mãe sorriu muito após ter lido essa historinha!!! Que travessura você fez com o pobre do jabuti!!! Nessa historinha, você demonstrou ser uma criança inteligente, decidida e corajosa, o que mostra realmente o que você é hoje. Parabéns.

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