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terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Do fundo do poço, ou melhor, do vaso


         Essa é para desencantar do demorado 2012 e seguir por um 2013 aberto, fresco, espaçoso e limpo! Mesmo fora de época como uma micareta, desejo a você um ótimo ano e nada apertos! Para despertar o Balaio pro ano novo, mais Crônica de Balaio!

Do fundo do poço, ou melhor, do vaso


— Tchau Kare!
— Tchau!
— Não vá chorar de saudade, segunda tamo de volta.
                Ufa! É.. morar sozinha deixa a gente cheia de mania de solidão. Embora, sempre receba visitas em casa, elas nunca demoram mais que uma semana. Dessa vez já fazia dez dias que eles estavam aqui. Foram passar o fim de semana no sul de Minas, mas logo estariam de volta para mais uns três dias. Fechei o portão aliviada e a porta mais ainda. Com as costas nela relaxei. De volta meu silêncio, de volta meu espaço. Tudo bem que a bagunça não era a minha, ou melhor, não só a minha. Uma única pessoa a mais e tudo é diferente. A poeira é outra, a desarrumação é outra. Até os cheiros da casa são outros. E só uma visita de três amigos durante quinze dias para me fazer perceber como sou cheia de cuidados com meus objetos. Ainda bem que a faxina seria dali a uns dias. Nesse momento de relaxamento, senti uma vontadezinha irresistível de ir ao banheiro e sentar no meu trono. Sim, de novo só meu!
                Pode parecer estranho, mas eu sinto uma verdadeira paz espiritual ao atender minhas necessidades fisiológicas. Todas! Reminiscências infantis?, talvez. Devidamente entronada, só faltando a coroa, percebo como o banheiro, que antes era individual, agora guardava os cheiros e os objetos de minhas visitas demorantes. “Preciso dar um jeito nisso aqui. Pelo menos uma lavadinha no vaso e uma passada de pano no chão”. Minha tolerância com a sujeira e a desorganização, até que tem crescido, mas ainda não me permite passar dias sem me incomodar com elas. Descarga, mãos lavadas, mas não enxugadas, pois a toalha agora vivia úmida, e vamos à limpeza. “Como o ser humano é facilmente condicionado, meu Deus! Bastou dez dias trancando a porta, por causa das visitas, para trancá-la mesmo estando sozinha. Vamos lá.”
                Tentei inutilmente virar a chave, tantas vezes, que não foi possível contar. No começo, depois da teceria tentativa, naturalmente me acalmei, na certeza de que com sutileza e delicadeza iria funcionar. O que não funciona com delicadeza? A tranca do meu banheiro. Fui ficando irritada com uma irritação que vinha do útero. Furiosa, mas com a mão tão leve quanto uma boa lembrança, tentava e tentava virar a bendita chave sem sucesso. Nem sombra dele. A máquina de lavar, do lado de lá da janela, era quem contava o tempo. Pelos barulhos dava pra saber em que ciclo estava. Comecei a me preocupar com a roupa que estava lavando. Se eu demorasse muito a sair dali, iria ficar com cheiro de galinha molhada. “Não, calma, uma hora vai abrir. Claro!” Lembrei-me do lustrador  ela de prata que havia no armário. Tirei a chave e besuntei com Brasso. De volta à fechadura, estava segura de que agora ia. Ia, ia nada! Umas dez tentativas e nenhum movimento novo. Aí pensei que se não fosse com Brasso seria com condicionador. Testei todos os cremes e gosméticos que achei. Vencido, na validade, para cabelo, pomada ginecológica e nada. “Clareador de manchas, não, né! É muito caro pra isso Aninha!” Nenhuma alternativa funcionou.
                A máquina começava o último ciclo e eu, que já tinha sentido raiva de tudo, tive a grande ideia de culpar minhas visitas. “Malditas visitas! Não fosse por elas, eu não teria me acostumado a trancar a droga dessa porta. Eu sequer fecho! Nem pra terem esquecido um documento e voltar do meio do caminho, eles servem! Que droga! Agora minha roupa vai ficar aí até eu conseguir abrir essa porcaria!” A raiva dos meus amigos aumentava minha fúria, ao mesmo tempo em que me apaziguava. Claro, é sempre útil achar um culpado, de preferência que esteja bem longe. Os pensamentos que me faziam cogitar a ideia de manutenção da fechadura eram arremessados a quilômetros de distância com a argumentação de que, quem em sã consciência iria pensar em fazer manutenção de fechadura de banheiro? Estava absolutamente convencida de que havia um culpado e que eram minhas visitas!
                Fui perceber o estalo da máquina, avisando que tinha terminado seu serviço, umas duas horas depois, quando senti fome de uma vez! Há quanto tempo estaria ali? Ainda era sábado, certo? Sim, era sábado. O pessoal devia ter saído de casa uma 10h30 e eu devia estar presa no banheiro, pelo menos desde as 11, 11h15. Ou seja, há mais de cinco horas. Que inferno! Mal humorada pela fome e pela roupa cheirando apena molhada, resolvi fazer o que gosto muito: tomar banho. Foi o banho mais demorado da minha vida. Sim, porque era pra relaxar, passar a fome, esquecer que estava presa, enfim. O banho também serviria para abrir portas! Ah, tinha que servir! Lavei os cabelos, passei a bucha, calmamente, por todo meu corpo, pedindo a todos os santos, deuses, deusas, santas e até semideuses que me ajudassem a abrir a porta. Afinal, há dez dias essa porta estava sendo trancada e aberta, trancada e aberta sem dar o menor problema!
                Depois do banho, a chateação. Minha toalha não estava lá como de costume. Dentro de um banheiro tão utilizado, as toalhas não enxugam mais. “Tudo bem, tudo bem...” Eu tentava me acalmar de todas as formas que eu sabia, mas nenhuma delas estava funcionando. Sequei-me com a toalha de rosto, quer dizer, secar não é bem a palavra, e demorei mais uma vida passando todos os cremes. De cabelo, de pele, de rosto, da área dos olhos. Tudo calmamente, embora a calma fosse uma imposição externa. Comecei a sentir raiva das vezes que meu pai, meus irmãos e até minha mãe reclamavam de quando eu demorava no banho. “Por que é que hoje vocês não estão aqui pra reclamar e me ajudar. Família! Vocês nunca estão, quando a gente mais precisa!” Sentada, no vaso, me peguei chorando por todas as raivas que senti dos meus pais e dos meus irmãos. Levei um susto quando percebi o que estava fazendo. De volta ao banheiro, senti a fome ainda mais forte depois de degustar o salgadinho das lágrimas.
                Levantei-me do vaso decidida. Agora a porta abriria. Vesti a roupa usada, senti o cheiro familiar dos meus cosméticos e respirei confiança. Ainda havia luz no céu, mas já passava das 18h com certeza. É o horário de verão. Lembrei-me da roupa na máquina. Devia estar uma beleza. De novo peguei a chave, limpei todas as melecas de antes, beijei-a, levantei-a para o alto, como que oferecendo a algum deus que quisesse esse tipo de oferenda e mais uma vez tentei. Fadiga de material. Coloquei tanta força que a infeliz quebrou. Algum deus sarcástico e sádico tinha aceitado o sacrifício daquela pobre chave. Caí sentada diante da porta. Desabei num choro doído e raivoso ao mesmo tempo em que me sentia idiota por estar chorando daquele jeito, afinal o mundo não ia se acabar. “Vai sim! Pare de disfarçar! Você está trancada nesse banheiro nojento, morrendo de fome e de ódio, sendo atacadas pelos piores pensamentos, que se aproveitam do momento de fragilidade, e você fica aí querendo dar uma de durona! Derrube essa porta, grite, morra, mas tome alguma atitude que realmente ajude a te tirar dessa!”
                Ainda aos prantos, fiquei de pé e comecei a chutar a porta, mas sem força. Fui acordar esmurrando, chutando e gritando com tudo de mim a maldita porta. Agora eu sentia dor. Murros, pontapés, até cabeçadas eu dei na porta e nada. Olhei pra janela basculante e tive a nítida impressão de que eu passaria por ela. Afastei o cesto de roupa suja, subi no parapeito e abri o máximo. A perna passaria, mas o quadril, não. Nem a cabeça de cearense. Mesmo assim tentei e levei o maior susto ao perceber que minha cabeça tinha ficado presa entre os vidros. Dei uma de lagarto e encolhi o esqueleto para escapar daquela armadilha do desespero. Chamar alguém? Quem? Quem escutaria? Os vizinhos de cima, um bando de chatos, se escutassem nem fariam nada, tenho certeza. A dona Lúcia, vizinha do lado, passava os fins de semana com as filhas. Mesmo assim gritei. Gritei, gritei e nada. Gritei morrendo de vergonha, desejando, no fundo, que ninguém escutasse mesmo. Que imbecil! Nada. A fome começava a me corroer por dentro. Já não conseguia disfarçá-la bebendo água da torneira. “Olha aí, podia ser pior. Imagina se estivesse faltando água!”
                Olhei ao redor, procurando a melhor aproximação de comida. Comer o que, num banheiro? Papel higiênico? Imaginei se eu fosse a mulher elástica. “Ah, aí não vale! Se você fosse, não estaria presa até essa hora, né meu bem? Era só se esticar toda e sair pela janela.” Fiquei sonhando com essa possibilidade. E a fome apertava cada vez mais. Molhei uma bolinha de papel higiênico e tentei engolir. Não deu muito certo da primeira vez, mas da segunda... também não. Aí olhei para o lado da porta, aonde vou acumulando o lixo que é reciclável e senti uma alegria indescritível. Com sorte, haveria umas duas azeitonas velhas nas caixas de pizza e alguns farelos de massa. Sim!!! Duas azeitonas velhas, uns nacos de queijo grudados no papelão e... papelão sabor pizza. O queijo duro comi na hora, sem nem pensar meia vez. Já as azeitonas iriam compor um patê de papel higiênico, servido com lascas de papelão sabor pizza. Até que me diverti com a brincadeira. Mas os sabores é melhor não detalhar.
                Agora de barriga cheia, claro que é uma piada, e exausta, absolutamente esgotada, tentei arrumar um canto para me deitar. A vantagem de casa velha é que os cômodos são grandes, e o meu banheiro é enorme. Ainda bem que não fazia frio, porque o cesto de roupa suja estava vazio vazio. Me restou o tapete, pisado milhões de vezes pelas visitas e a toalha de rosto como travesseiro. Bati o tapete, tentei concentrar os cabelos e pelos, passando minha chinela havaiana pelo chão, apanhei a sujeira com papel e pronto. O lugar estava mais limpo. Com shampoo fiz uma limpeza rápida no vaso, já que guardo atrás dele sua vassourinha  Escovei os dentes, como sempre, passei o fio dental e me deitei. Embora um pouco mais calma e conformada, não foi nada fácil conciliar o sono.
                Acordei moída no dia seguinte, torcendo para que já fosse segunda-feira e finalmente minhas visitas adoráveis e ultimamente, odiadas, pudessem me salvar. Mas não. Era domingo ainda. Imaginei o Globo rural, meu programa favorito das manhãs dominicais, imaginei uma deliciosa xícara de café e... fechei de novo os olhos tentando dormir a sonhar. Sonhar com nada além do que já tenho do outro lado daquela porta. Minha cama, meu café, meu lençol, minha toalha, minhas visitas! Depois de despertar inteira, senti que o dedão do pé esquerdo latejava. Deve ter sido ontem. Com certeza. Abri o armário e tirei uma pomada de arnica para passar no machucado. Era isso. Nem morreria, nem viveria por todo aquele domingo. Apenas sobreviveria. Portanto, era melhor deixar as revoltas para as razões reais e parar de confundir a porta com pessoas. Isso não aliviou em nada o longo dia que tive pela frente, mas pelo menos me fez ter outra postura. Resolvi fazer do banheiro um laboratório, depois um ateliê, aonde montei e desmontei instalações com os recicláveis e os cosméticos. Por último me imaginei numa torre de observação. Abri o cavalete, que guardo ao lado do vaso, bem do ladinho da janela. Subi solenemente como se estivesse subindo um milhão de degraus. De lá dava pra ver quase todo o quintal. Observei a vida vegetal como nunca, ainda mais fazendo o esforço de guardar muito bem as observações já que não poderia tomar nota de nada!
                O tempo, a fome, o tédio, algumas vezes os pensamentos, foram todos iguais aos do dia anterior. A novidade tinha sido uma dor de cabeça nada forte, mas constante. Devo ter ido dormir mais tarde que no sábado, porque quando acordei no dia seguinte, o sol já estava forte. Num pulo me levantei e fui logo tomar banho para esperar minhas visitas queridas. Quando estava escovando os dentes, ouvi o som mais desejado de todo o fim de semana: o barulho das chaves no portão e depois na porta e as vozes que comentavam a freada do fusca no semáforo.
— Kare! Chegamos!! Sentiu nossa falta?
— Aqui, aqui! – Paulo se aproximou da porta e disse de novo: 
— Chegamos, saia logo daí. – Me retorcendo de alegria gritei: 
— Por favor, chamem o chaveiro. Passei o fim de semana trancada nesse banheiro!

4 comentários:

  1. Adorei, tem suspense,torci para voce sair do banheiro. beijos

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  2. Adorei Aninha, já tinha escutado lá no museu, mas adorei poder ler. E você sabe achei super sacada, detalhes maravilhosos...a sobra da azeitona na caixa de pizza, demais.
    beijos grandes

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  3. Bel, minha querida, seus comentários trazem flores para o Balaio. Venha sempre, escreva sempre. Um beijo.

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