O texto de hoje é bem fresquinho. Acabou de sair do forno. Para você ler e me dar sua opinião, mais uma Crônica de Balaio.
O despertador tocou às 8h, me avisando que estava
começando meu programa favorito da televisão brasileira: Globo rural. Tudo bem,
o segundo, vai. Fiquei me espreguiçando na cama e não me levantei logo. Na
verdade me levantei bem depois, quando já havia começado o Esporte Espetacular,
que é muito legal nos domingos sem Fórmula 1. Hoje foi apresentada a última
reportagem da série Brasileirinhos, que falava sobre a vida do Oscar, camisa 10
da seleção. Acompanhei algumas dessas reportagens, mas nenhuma me chamou tanto
a atenção quanto a de hoje. Não me lembro bem, se os repórteres foram os
mesmos, ou se cada jogador foi entrevistado por um diferente. Provavelmente
sim. Mas o que me deixou pensando foi outro aspecto dessa reportagem.
O
menino Oscar perdeu o pai aos 3 anos de idade, num acidente de carro. O pai,
louco pelo filho homem, como enfatizado pelo repórter, profetizou que o menino
seria jogador do São Paulo. Oscar foi, e sente muito orgulho por ter realizado
um sonho sonhado pelo pai. Depois, por questões de contrato, que a gente nunca
sabe o que, exatamente, ele saiu do time paulista e foi jogar no Internacional.
Foi de lá que veio para seleção brasileira. Oscar teve peito para usar a camisa
10, que nem mesmo Romário usou, como destacado pelo Pelé. E mais ficou famoso pelos
seus 3 gols na final do Sub-20, em 2011 contra Portugal. Enfim, Oscar realmente
tem feito por merecer a fama. Esse não é ponto. O ponto é que durante o tempo
inteiro da reportagem a figura mais destacada foi a do pai que morreu e não a
da mãe que viveu, inclusive grávida da terceira filha, no momento da perda do
marido, e conseguiu criar três filhos. E mais, ela mesma atribui os 3 gols de
Oscar na final do Sub-20, ao pedido que fez ao finado e não à sua batalha
diária durante anos para conseguir trabalhar e ao mesmo tempo acompanhar o
filho no sonho. Essa mulher sequer tem a noção do seu papel na carreira desse
jogador. Não acho que ela seja uma exceção.
Não
estou aqui questionando os sonhos ou aqueles que nos inspiram. De modo algum.
As forças que nos mantêm firmes, ou não tão firmes, mas determinados num
propósito, vão muito além do suprir as necessidades básicas como comer, dormir,
estudar, beber. Eu sei disso. O que me deixou pensando depois dessa reportagem,
que me parece ser muito ilustrativo, é o papel secundário que a mãe de Oscar
assume. Tudo bem que o pai sonhou, mas foi ela que botou comida em casa, que
pagou as contas de água, luz, gás, que ia com o filho a onde fosse necessário,
que certamente o ajudou no dever de casa. E eu me pergunto: por que é que nem ela,
nem o repórter enxergaram isso? Por que é que muitas mulheres ainda insistem em se
colocar em um plano inferior?
Nem pense que farei uma defesa feminista da
importância da mulher na sociedade, dizendo que historicamente foram as
mulheres que cuidaram dos velhos, dos doentes e das crianças. Que em algumas
sociedades, inclusive, os homens recebiam o melhor alimento, ou ainda o
alimento. Não. Sem defesas, mas também sem vitimizações. Quando nós mulheres
vamos assumir a construção do feminino individual e intransferível, que cabe só
a nós inventar? Quando vamos criar um feminino que não precise se autoafirmar
na negação do masculino, se vitimizando historicamente pela opressão, pela
amputação, pela violação?
Também
não vou negar a amputação, a violação e a opressão. Não se trata disso. Se
trata de decidir entender-se como autora da própria história, e que portanto,
embora numa certa medida não se possa escolher o que a vida nos oferece/impõe,
sempre se poderá decidir o que fazer com essa oferta/imposição. Sempre. Ou não
têm sido mulheres as algozes de suas filhas, nos rituais de amputação do
clitóris? Somos responsáveis pelo papel histórico desempenhado. Não deixemos
que certos discursos esvaziem nossas atitudes de suas consequências. Só assim é
possível desejar igualdade. Mas até nisso nos vejo perdidas. Igualdade não é
homogeneidade. Somos sim diferentes dos homens, senão, não seríamos mulheres.
Temos outras habilidades, outros modos de realizar a mesma tarefa, outras
formas de pensar o mundo e tentar entendê-lo. Outras formas, outros modos. No
plural, sempre. Porque não me parece que haja um modo feminino, ou um modo
masculino. Existem os femininos e os masculinos.
A
igualdade de que falo é aquela que um dia nos fará relembrar que Marie Curie
foi a primeira a ganhar dois prêmios Nobel. A primeira pessoa. A mesma
igualdade que reconhecerá as diferenças como possibilidade e não como razões
para discriminação. Como bem diz Boaventura de Sousa Santos: “lutar pela
igualdade sempre que as diferenças nos discriminem. Lutar pelas diferenças
sempre que a igualdade nos descaracterize”. E que isso não tire o brilho nem o
heroísmo de Éowyn ao matar o Senhor dos Nazgûl, o Rei Bruxo de Angmar, ato do
qual nenhum homem seria capaz, pelo simples fato de ser homem.
Que tal cogitar essa igualdade e sonhar
com o dia em que rotularemos menos e entenderemos mais? Entenderemos inclusive
que é injusto esperar que o indivíduo sozinho e por conta própria tenha uma
carreira de sucesso. Entenderemos que para o Oscar ser essa referência que é
hoje, ele precisou de um pai sonhador, de uma mãe batalhadora, e provavelmente,
porque isso é omitido na reportagem, de uma irmã mais velha que cuidou dele e
não que foi cuidada por ele. Entenderemos e consideraremos os atos e os valores
de mulheres e homens, reconhecendo-os como produtores e produtos socioculturais.
E, portanto, absolutamente capazes de criar uma sociedade menos desigual e mais
plural.
Sensível, delicada, falta a sociedade nos enxergar com mais clareza, se disponibilizar a ver o trabalho da mulher.
ResponderExcluirAdoro essa crônica
beijos
bel
É... querida, mas isso começa conosco! Sabe o que eu ouvi uma vez? Que o machismo é como a hemofilia. Se manifesta no filho, mas quem transmite é a mãe. Não é demais!
ExcluirObrigada pela visita!