Fotografia é uma das minhas paixões reprimidas. Se bem que não tanto ultimamente. Esta história conta o dia em que conheci o Marcílio. Uma figura. E você, gosta de fotografar? Conheceu algum Marcílio? Bom feriado e lindas imagens!
— Boa noite, boa noite! Ora, ora, ora vejam o que
temos aqui. Como você se chama minha flor de laranjeira?
“Meu deus, que caritcha é esse? Camisa de elanca
em pleno século 21, penteadinho ultrapassado e minha flor de laranjeira?
Francamente...”
— Olá, como vai? Meu nome é Anna Karenina.
— Uau!! Uma rainha russa temos hoje para o
jantar! Marcílio Flores de Carvalho, seu criado.
“Não, ele não pode ser o Marcílio! A Josi não
faria isso comigo.”
— Estou enganado ou é você que queria umas aulas
de fotografia com este cravo aqui?
“Cravo? Ele deve mesmo se achar o máximo!”
— É, bem... na verdade eu...
— Não, não diga nada, pelo seu olhar já sei que
é. Eu tenho um sexto sentido com os desejos da mulheres, sabe?
“Minha nossa senhorinha, que pé no ovário é esse
rapaz!”
— A Josi me falou de uma amiga que gosta muito de
fotografia e que estava a fim de aprender a técnica etc e tal. Olhe mocinha,
ninguém melhor que eu. Digamos que eu seja um Carvalho na exigência e Flores na
paciência. Demais, não? Vamos escrever lindas imagens com luz. Sacou? Escrever
com luz, foto grafar? Vem do grego. Esses caras eram foda mesmo, não acha? Hoje
eles estão mal das pernas, mas eu jamais negaria a importância deles para a
cultura ocidental. Eu e o meu senso de justiça. Mas me diga, qual o modelo da
sua máquina? Olha, minha disponibilidade é apenas aos sábados à tarde, heim?
Não vá me inventar outro horário! Mas, para uma rainha russa eu posso abrir
exceções.
Entediada,
bebi o último gole da minha caipirinha e retruquei enfezada.
— Não, Anna Karenina era apenas uma personagem de
um romance russo.
— Ah, dá no mesmo, tudo é ilustre.
Sorri sem graça tentando esconder um pequeno
desespero com cheiro de irritação, raiva da Josi e falta de ar. Como meu copo
estava vazio, saí não tão de fininho, deixando claro que pegaria uma bebida.
Nem passou pela minha cabeça perguntar a ele se queria uma. Pisando duro,
atravessei a sala na direção da cozinha, onde Josi finalizava os preparativos
do jantar.
— Está se divertindo, querida?
— Está tudo uma delícia. Você se preocupa com os
detalhes dos detalhes e isso faz toda a diferença em tudo. Mas, amiga, quem é
mesmo o cara que você falou que é fotógrafo e que iria me dar umas aulas?
— Ah, olha ele ali. É o Marcílio. Vou te
apresentar a ele.
— Não precisa, ele já se apresentou. E eu preciso
te dizer que sua idéia dele me dar aulas foi péssima! O que você quer? Que eu
passe a odiar fotografia?
— Ai Kare, deixa de ser exagerada.
— Exagerada? Eu não fui com a cara dele, com a
fala dele, com as idéias dele, nem com a camisa dele! Só achei bacana o
escrever com luz.
— Hãm?
— Não, nada. Olha só, você vai já desfazer o
convite. Prefiro morrer na ignorância a aprender o que for com um sujeitinho
boçal como esse.
— Ah, gata, sinto te informar que já
diagnosticaram a morte cerebral de Inês. Não há mais nada o que fazer. Eu e o
Cláudio pagamos a ele dois meses de aula e vamos te dar de presente de
aniversário.
— Presente de aniversário? – Tomei um gole da
nova caipirinha, essa de frutas vermelhas, de certo para combinar com o Flores.
Que ódio! Eu ia ter que aturar esse mala, não tinha jeito.
— Sim, amada, você não vai nos fazer essa
desfeita, vai? Além do mais, o cara está na maior pindaíba, sem arrumar
trabalho, corneado pela noiva e acabou de sair de um tratamento de câncer de
pele. Está bom para você meu bem?
— E o que eu tenho a ver com isso?
— Você, nada. Mas o Cláudio, não sei por que
cargas d’água, é alucinado pelo Marcílio. Eles são amigos desde a infância e um
morre pelo outro se for preciso. Como você comentou com a gente que queria
aprender esses lances de fotografia, o Cláudio, imediatamente, resolveu os dois
problemas.
— Como assim, resolveu? Na verdade, ele criou
problemas!!
— Josi, amor, olha quem chegou!
Ela
escapuliu da cozinha me deixando espumando de raiva. Passei parte da noite
mal-humorada com aquela história. Com meu olhar desintegrador eu tentava
inutilmente transformar o Cláudio em poeira estelar e o Marcílio em uma hipótese.
Ruim, ainda por cima. Não consegui. “Veja
pelo lado bom, Anninha, você adorou a história de escrever com luz, não foi? De
onde saiu isso, pode sair outras ideias legais. Hum...” Suspirei o mais
profundamente que consegui e de longe levantei um brinde em comemoração à defesa
de doutorado do Cláudio. A noite era de felicidade. De toda a chatice da
conversa inicial, o que não saia da minha cabeça era o escrever com luz. Aquilo
era simplesmente fantástico!
A
festa prosseguiu animada. Relaxei. Fazer o quê? Apesar disso evitei o Marcílio
o tempo todo. Era melhor não criar anticorpos. Antes de sair, ele veio falar
comigo.
— E aí, gracinha? A que horas do sábado à tarde
teremos nosso primeiro encontro?
— Só posso terça às 10h
— Fechado! Nos vemos, minha rainha russa.
Rosnei.
Mas no final da rosnada terminei achando engraçado. O que?, eu não sabia. No
primeiro encontro já experimentei a surpresa. Sabe aquela propaganda que
pergunta: pode ser? e a alternativa é sempre melhor? Pois é. Foi exatamente
isso o que aconteceu. O Marcílio, mesmo chato, é capaz de encantar qualquer
pessoa pela fotografia e eu não precisava muito. Ele não só demonstrou um amor
incandescente por esta arte, como um conhecimento impressionante. Aí, o danado me
ganhou. Agora sempre que escrevo uma imagem com luz, me lembro dele e agradeço.
Ao Carvalho pela exigência e ao Flores pela paciência.
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