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sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Banho no cacimbão



Só quem já tomou banho no cacimbão sabe como é. Mas você que não tomou, pode imaginar. Mais uma história de água, sertão e mulheres. Mais um banho de minha vida. E você, tem uma história de banho para contar?


         Quando eu voltei da Alemanha, voltei cheia das novas amizades. Algumas, muito especiais, como a Laura. Uma argentina que eu tinha conhecido no curso de alemão. Ela estava fazendo o mestrado com uma turma que tinha gente do mundo inteiro e eu acabei sendo adotada por eles. A não ser eu e Laura, nunca mais voltamos a nos encontrar, apesar das inúmeras promessas.
Lembro-me bem da primeira vez que ela veio me visitar aqui no Brasil. Isso foi em janeiro de 2002. Muitas foram as diferenças que a fizeram estranhar e ao mesmo tempo gostar do Brasil, ou daquele pedaço de Brasil que ela estava conhecendo. Fizemos vários passeios, mas todos programados em função de nossa ida a Crateús, a cidade da família da minha mãe. A Laura estava encantada com a possibilidade de conhecer o sertão e a vida que era possível ali, e minha mãe estava toda orgulhosa porque ia levá-la para a fazenda da vovó. O primeiro comentário:
— Calor!
— É, essa época é muito quente. Em julho é mais fresco. — Assim, respondia minha mãe toda explicativa.
Eu ficava pensando como ela podia achar que julho era fresco, meu Deus! O vento soprava, mas era tão quente, tão quente, que chegava a cozinhar até pensamento. Depois do almoço, ninguém pensava em nada, que era para não correr o risco de perder uma boa ideia, morta pelo calor. Mas aquele, em especial era um ano de bom inverno. Sim, porque para nós, inverno é quando chove. Não importa se estamos no hemisfério sul e o mês é janeiro. O rio com água, o açude dando nado e a chuva fresca eram os convites aos muitos banhos. Mas um banho não era bom. O banho na casa da fazenda não era nada agradável porque a água era salobra. Não dava para lavar o cabelo pois ficava uma palha. Por isso mesmo, todo fim de tarde nós íamos tomar banho no cacimbão. Primeiro os homens, depois as mulheres. Para mim, esse banho era sempre uma festa. Ainda é.
No primeiro dia que estávamos na fazenda, o fim de tarde foi como o habitual. Era mais ou menos quatro e meia quando os homens foram para o cacimbão.
— Para onde eles vão, Kare? — Ela me perguntou com um português espanholado.
— Vão tomar banho no cacimbão.
— E por que não tomam aqui?
— Ah, é que a água aqui da casa é ruim. Tem muito sal.
— E o banho?
— O que é que tem?
— Nós vamos também?
— Vamos. Depois que eles voltarem nós vamos.
         Não sei o que ela imaginou que fosse um cacimbão, mas eu nem me preocupei em explicar ou perguntar se ela ia se sentir à vontade tomando banho ali com todo mundo ao ar livre. Todo mundo não. Só as mulheres. Mas enfim, todas como nos deram à luz. Eu conhecia bastante a Laura, mas era naquele contexto de Alemanha. Sabia pouco sobre sua família, seus costumes e menos ainda como era sua relação com seu corpo. Mas isso, eu só estou pensando agora. Aí, os homens voltaram todos banhados e cheirosos. Os aperechos ficavam logo na calçada. Sem mais, todas as mulheres se organizaram. Uma levava, na cabeça, uma bacia enorme e outra carregava o baldinho com shampool, sabonete, pente e a corda. Já o resto engrossava a romaria com toalhas nos ombros.
— Você vem com a gente? — Por que ela não iria, se o banho na casa não era bom?
— Si, como no?
         No caminho, ela perguntou como era um cacimbão e eu me pus a explicar. Depois da descrição do local ela ficou me olhando com uma cara de interrogação. Nisso já tínhamos atravessado a estrada e estávamos do outro lado da cerca.
— Kare, e donde todo mundo toma banho lá no cacimbão?
— No cacimbão, ué! Ao ar livre, ao relento, sei lá como posso te dizer isso. — Por um instante achei que o problema era de comunicação e que usar sinônimos, uma hora resolveria. Mas em seguida me dei conta de que o problema era outro. Ela não tinha entendido que tomaríamos banho todas nuas, puxando água e jogando na cabeça com uma lata velha de leite Ninho. Nesse momento, senti um pequeno pavor e uma vergonha enorme daquela cena. Para mim era tão familiar, que eu nunca pensei que alguém pudesse achar estranho.
O que foi Lau?
— No, nada. Entonces... voceis tomam banho todas desnudas? Ao mismo tempo?
— É... Isso te incomoda?
— No, quer dizer, no sei. Acho que estoy un poquitito ansiosa.
         Ansiosa estava eu. Sentia um mal estar por não ter me dado conta disso antes. E agora? Por um lado, eu poderia voltar com ela e evitar que um constrangimento maior acontecesse. Por outro, eu estava morrendo de vontade daquele banho. Fazia tanto tempo que eu não ia à fazenda e estar alí com minhas tias era tão bom. E se ela voltasse sozinha? Não seria uma boa. Ela morria de medo de vaca. E se ela ficasse lá e esperasse a gente tomar banho? Uma possibilidade.
— Kare, despues de adulta eu nunca me banhe con mi madre. — Meu Deus, bateu um desespero!
— Lau, que tal se nós voltarmos e tomarmos banho em casa?
— Na água ruim? No, por favor!
— Acho que no final será melhor.
— Estás angustiada, Kare?
— Quem eu? Eu não, por quê? — Eu estava sim. Queria sumir. Queria qualquer coisa, menos estar ali naquele impasse.
— Parece. — Nossos passos ficaram lentos. Cada vez mais lentos à medida que nos aproximávamos do cacimbão. Decidi seguir no propósito de tomar o bendito banho.
— Kare, eu quero experimentar esse banho.
— Tem certeza? — Ufa, que alívio! Que alívio! Mas será que isso não seria ruim para ela, afinal uma pessoa que nunca tomou banho na frente da própria mãe, há de ter alguma restrição com o resto do mundo. Chegamos à cacimba e lá já estava minha mãe puxando água no galãozinho de tinha Coral. Assumi o cargo e comecei a puxar a água doce e macia e a encher a bacia enorme que elas tinham trazido.
         Em pouco mais que um instante minhas tias já estavam todas nuas. A primeira água era para lavar as calcinhas que ficavam secando enquanto tomávamos banho. Depois, a tia Joaninha pegava um balde a aguava um pé de acerola que ficava ali perto, reclamando que ainda iam matar de sede a pobre planta. E eu puxando água e pensando se tomaria mesmo aquele banho. A situação me fez sentir uma vergonha que eu nunca tinha sentido na minha vida! Tudo era tão natural para mim, para quelas mulheres. Elas esbanjavam alegria e nem sombra de pudor por estarem ali expondo seus corpos marcados pelo tempo, pelas gravidezes, pela vida, tão bem vivida. Depois de puxar a última lata que encheu a bacia para o meu banho, respirei fundo e comecei a tirar a roupa. Tão tímida, tão acanhada...tão dentro de mim. Evitava olhar a Laura.
Terminei de me despir de cabeça baixa olhando só a água na bacia. Dobrei os joelhos e me baixei. De cócoras, joguei a primeira lata d’água na cabeça e quando abri os olhos vi à minha frente a Laura. Também nua, agachada, morrendo de vergonha, mas com uma expressão que não deixava a menor dúvida de que ela estava se divertindo com aquilo. “Me sinto livre, Kare.” Era o que me dizia com os olhos. Aí minha mãe começou a conversar com ela e nos distraimos. Tanto, que só fomos perceber que a Laura lavava sua calcinha dentro da bacia de água, quando ela estava terminando o serviço. Aí foi uma gargalhada geral! Como só as “Azevedas” fazem. A cena voltava a ser familiar. Joguei mais água na cabeça como se lavasse a alma. Que delícia de água, que delícia de banho, que de delícia de família era aquela! Se eu pudesse teria ficado ali banhando-me para sempre.

4 comentários:

  1. Tomar banho, à beira de uma cacimba é uma delícia. No quintal de minha casa, quando eu menina, havia uma. Já contei, no meu blog, a história da "Cacimba da Dona Mariquinha", minha bisavó, que ficava em um sítio na Praça do Colégio (Imaculada- Fortaleza) e que não secou, na famosa seca de 1877 a 1879, porque ela não negava água aos flagelados que vinham do sertão e acampavam no sítio da Rua 25 de Março.

    Excelente, a sua crônica.
    um abraço

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  2. Querida, me conte do seu blog. Quero ler essa história!
    Obrigada por mais um comentário.
    um abraço.

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  3. Fazia tempo que você passava por aqui, heim! Saudade.

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