Só quem já tomou banho no cacimbão sabe como é. Mas você que não tomou, pode imaginar. Mais uma história de água, sertão e mulheres. Mais um banho de minha vida. E você, tem uma história de banho para contar?
Quando eu voltei da Alemanha, voltei cheia das novas
amizades. Algumas, muito especiais, como a Laura. Uma argentina que eu tinha
conhecido no curso de alemão. Ela estava fazendo o mestrado com uma turma que
tinha gente do mundo inteiro e eu acabei sendo adotada por eles. A não ser eu e
Laura, nunca mais voltamos a nos encontrar, apesar das inúmeras promessas.
Lembro-me bem da
primeira vez que ela veio me visitar aqui no Brasil. Isso foi em janeiro de
2002. Muitas foram as diferenças que a fizeram estranhar e ao mesmo tempo
gostar do Brasil, ou daquele pedaço de Brasil que ela estava conhecendo. Fizemos
vários passeios, mas todos programados em função de nossa ida a Crateús, a
cidade da família da minha mãe. A Laura estava encantada com a possibilidade de
conhecer o sertão e a vida que era possível ali, e minha mãe estava toda
orgulhosa porque ia levá-la para a fazenda da vovó. O primeiro comentário:
— Calor!
— É, essa época é muito quente.
Em julho é mais fresco. — Assim, respondia minha mãe toda explicativa.
Eu ficava pensando
como ela podia achar que julho era fresco, meu Deus! O vento soprava, mas era
tão quente, tão quente, que chegava a cozinhar até pensamento. Depois do
almoço, ninguém pensava em nada, que era para não correr o risco de perder uma
boa ideia, morta pelo calor. Mas aquele, em especial era um ano de bom inverno.
Sim, porque para nós, inverno é quando chove. Não importa se estamos no
hemisfério sul e o mês é janeiro. O rio com água, o açude dando nado e a chuva fresca
eram os convites aos muitos banhos. Mas um banho não era bom. O banho na casa
da fazenda não era nada agradável porque a água era salobra. Não dava para
lavar o cabelo pois ficava uma palha. Por isso mesmo, todo fim de tarde nós
íamos tomar banho no cacimbão. Primeiro os homens, depois as mulheres. Para
mim, esse banho era sempre uma festa. Ainda é.
No primeiro dia que
estávamos na fazenda, o fim de tarde foi como o habitual. Era mais ou menos
quatro e meia quando os homens foram para o cacimbão.
— Para onde eles vão, Kare? — Ela
me perguntou com um português espanholado.
— Vão tomar banho no cacimbão.
— E por que não tomam aqui?
— Ah, é que a água aqui da casa
é ruim. Tem muito sal.
— E o banho?
— O que é que tem?
— Nós vamos também?
— Vamos. Depois que eles
voltarem nós vamos.
Não sei o que ela imaginou que fosse um cacimbão, mas eu nem
me preocupei em explicar ou perguntar se ela ia se sentir à vontade tomando
banho ali com todo mundo ao ar livre. Todo mundo não. Só as mulheres. Mas
enfim, todas como nos deram à luz. Eu conhecia bastante a Laura, mas era
naquele contexto de Alemanha. Sabia pouco sobre sua família, seus costumes e
menos ainda como era sua relação com seu corpo. Mas isso, eu só estou pensando
agora. Aí, os homens voltaram todos banhados e cheirosos. Os aperechos ficavam
logo na calçada. Sem mais, todas as mulheres se organizaram. Uma levava, na
cabeça, uma bacia enorme e outra carregava o baldinho com shampool,
sabonete, pente e a corda. Já o resto engrossava a romaria com toalhas nos
ombros.
— Você vem com a gente? — Por
que ela não iria, se o banho na casa não era bom?
— Si, como no?
No caminho, ela perguntou como era um cacimbão e eu me pus a
explicar. Depois da descrição do local ela ficou me olhando com uma cara de
interrogação. Nisso já tínhamos atravessado a estrada e estávamos do outro lado
da cerca.
— Kare, e donde todo mundo toma
banho lá no cacimbão?
— No cacimbão, ué! Ao ar livre,
ao relento, sei lá como posso te dizer isso. — Por um instante achei que o
problema era de comunicação e que usar sinônimos, uma hora resolveria. Mas em
seguida me dei conta de que o problema era outro. Ela não tinha entendido que
tomaríamos banho todas nuas, puxando água e jogando na cabeça com uma lata
velha de leite Ninho. Nesse momento, senti um pequeno pavor e uma vergonha
enorme daquela cena. Para mim era tão familiar, que eu nunca pensei que alguém
pudesse achar estranho.
— O que foi Lau?
— No, nada. Entonces... voceis
tomam banho todas desnudas? Ao mismo tempo?
— É... Isso te incomoda?
— No, quer dizer, no sei. Acho
que estoy un poquitito ansiosa.
Ansiosa estava eu. Sentia um mal estar por
não ter me dado conta disso antes. E agora? Por um lado, eu poderia
voltar com ela e evitar que um constrangimento maior acontecesse. Por outro, eu estava
morrendo de vontade daquele banho. Fazia tanto tempo que eu não ia à fazenda e
estar alí com minhas tias era tão bom. E se ela voltasse sozinha? Não seria uma
boa. Ela morria de medo de vaca. E se ela ficasse lá e esperasse a gente tomar
banho? Uma possibilidade.
— Kare, despues de adulta eu
nunca me banhe con mi madre. — Meu Deus, bateu um desespero!
— Lau, que tal se nós voltarmos
e tomarmos banho em casa?
— Na água ruim? No, por favor!
— Acho que no final será
melhor.
— Estás angustiada, Kare?
— Quem eu? Eu não, por quê? — Eu
estava sim. Queria sumir. Queria qualquer coisa, menos estar ali naquele
impasse.
— Parece. — Nossos passos
ficaram lentos. Cada vez mais lentos à medida que nos aproximávamos do
cacimbão. Decidi seguir no propósito de tomar o bendito banho.
— Kare, eu quero experimentar
esse banho.
— Tem certeza? — Ufa, que
alívio! Que alívio! Mas será que isso não seria ruim para ela, afinal uma
pessoa que nunca tomou banho na frente da própria mãe, há de ter alguma
restrição com o resto do mundo. Chegamos à cacimba e lá já estava minha mãe
puxando água no galãozinho de tinha Coral. Assumi o cargo e comecei a puxar a
água doce e macia e a encher a bacia enorme que elas tinham trazido.
Em pouco mais que um instante minhas tias já estavam todas
nuas. A primeira água era para lavar as calcinhas que ficavam secando
enquanto tomávamos banho. Depois, a tia Joaninha pegava um balde a aguava um pé
de acerola que ficava ali perto, reclamando que ainda iam matar de sede a pobre
planta. E eu puxando água e pensando se tomaria mesmo aquele banho. A situação
me fez sentir uma vergonha que eu nunca tinha sentido na minha vida! Tudo era
tão natural para mim, para quelas mulheres. Elas esbanjavam alegria e nem
sombra de pudor por estarem ali expondo seus corpos marcados pelo tempo, pelas
gravidezes, pela vida, tão bem vivida. Depois de puxar a última lata que
encheu a bacia para o meu banho, respirei fundo e comecei a tirar a roupa. Tão
tímida, tão acanhada...tão dentro de mim. Evitava olhar a Laura.
Terminei de me
despir de cabeça baixa olhando só a água na bacia. Dobrei os joelhos e me
baixei. De cócoras, joguei a primeira lata d’água na cabeça e quando abri os
olhos vi à minha frente a Laura. Também nua, agachada, morrendo de vergonha,
mas com uma expressão que não deixava a menor dúvida de que ela estava se
divertindo com aquilo. “Me sinto livre, Kare.” Era o que me dizia com os olhos.
Aí minha mãe começou a conversar com ela e nos distraimos. Tanto, que só fomos
perceber que a Laura lavava sua calcinha dentro da bacia de água, quando ela
estava terminando o serviço. Aí foi uma gargalhada geral! Como só as “Azevedas”
fazem. A cena voltava a ser familiar. Joguei mais água na cabeça como se
lavasse a alma. Que delícia de água, que delícia de banho, que de delícia de
família era aquela! Se eu pudesse teria ficado ali banhando-me para sempre.
Tomar banho, à beira de uma cacimba é uma delícia. No quintal de minha casa, quando eu menina, havia uma. Já contei, no meu blog, a história da "Cacimba da Dona Mariquinha", minha bisavó, que ficava em um sítio na Praça do Colégio (Imaculada- Fortaleza) e que não secou, na famosa seca de 1877 a 1879, porque ela não negava água aos flagelados que vinham do sertão e acampavam no sítio da Rua 25 de Março.
ResponderExcluirExcelente, a sua crônica.
um abraço
Querida, me conte do seu blog. Quero ler essa história!
ResponderExcluirObrigada por mais um comentário.
um abraço.
Bom demais o texto e o banho!
ResponderExcluirFazia tempo que você passava por aqui, heim! Saudade.
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