Desde ontem venho
sentindo uma alegriazinha fácil e barata. Como assim? Ora, uma alegria de morar
onde moro, de ter o que tenho, de gratidão com minha orquídea só porque ela vai
florescer. Acordei apaixonada pelo meu lençol, achando que ele era tudo o que eu
precisava para ser feliz. Tenho andado tão exigente com a vida e comigo, que
muito me surpreendi com aquela simplicidade minimalista. Demais até! E aquela
felicidade comum não veio sozinha, estava acompanhada de um retorno a mim
mesma, àquela Karenina que morou no Crusp, estudou Nutrição na UECE, uma Anna
Karenina simples e leve que há muito eu não via. Parecia que eu tinha mudado,
mudado e mudado e deixado um pouco de ser eu. Talvez tenha mesmo. Quer dizer,
talvez eu tenha mudado muito mesmo, mas deixado de ser eu? Sei lá.
Hoje o
pilates foi mais legal do que de costume. A carga maior nos exercícios, que
frequentemente me irrita, me fez sentir superando limites! Olha só. Voltei para
casa e depois de um banho delicioso escolhi uma calça que adoro, mas que fazia
anos que eu não usava. Os sapatos também. Confortabilíssimos. Chega meus pés
sorriram quando entram neles. Saí de casa me sentindo linda, uma perfeita filha
de Oxum com aquela calça amarela! Já nos primeiros passos, percebi o quão
velhos estavam meus sapatos, mas nada desviava a atenção daquele conforto e
mais uma vez fui feliz de uma felicidade simples e barata. Novamente tive a
sensação de me aproximar de mim mesma e de me amar por ser eu quem sou. Bem,
mas embora seja eu quem eu sou, seria a mesma? Meus sapatos, sem dúvida que
não. O pé esquerdo estava mais frouxo do que de costume. Será que pé emagrece?
Deve ser o pilates.
Nesses dias de
sol, interno e externo, me deleito ainda mais andando de moto. Quando cheguei
na EACH me sentia invencível. Desci da
moto e senti o pé esquerdo ainda mais frouxo. Tirei o capacete, arrumei as
tralhas de motoqueira e resolvi olhar para o pé e entender melhor porque ele
parecia tão mais confortável. Ao olhar o sapato assim de cima, não vi nenhuma
diferença. Mas ao virar o pé para dentro percebi que quase metade da lateral
estava praticamente solta. Não, não era descosturado, não. Era desmanchado
mesmo. O material do solado havia se desmanchado, literalmente. Olhei embaixo
do sapato e o que vi foi outra tragédia da mesma família. O solado estava
partido no calcanhar e cheio de furos. “Meu Deus! Mas ele era tão bom, tão
gostoso... e tão velho, não é querida!” Tentei pensar numa saída caso eles me
deixassem realmente na mão. “Logo hoje que terei duas reuniões e uma tarde inteira
de aula, caminhando de lá para cá da lousa! Me dei mal!”
A expressão pisar em ovos nunca se aplicou tão
bem a mim. Era isso mesmo, eu caminhava com tanta leveza, com tanto cuidado,
mas tanto, tanto, que nem ovos eu quebraria. Cheguei na minha sala e fui logo
mostrando a marmota ao pessoal. Tire sarro de você mesmo e roubará dos outros
essa oportunidade! Ninguém deu muita bola. A Viviane até disse que não dava
para ver, caso eu não saísse por aí mostrando a Deus e ao mundo. Graças a Deus!
Mas e a aula? Ai, ai, ai... e aluno é aquilo que a gente já sabe! Não importa a
idade, eles estão sempre de olho nos mínimos detalhes dos professores. Eles
poderiam até não me dizer nada, mas seria o comentário da semana.
- Hei, você viu
que o sapato da professora vai deixando um rastro por onde ela passa?
- Nossa! É mesmo!
Olha, tá ficando um pozinho preto pela sala toda!
Que inferno! Mas fazer o que? Eu não podia
simplesmente não dar aula. Alegando o quê? Se eu estava na Escola, todo mundo
já tinha me visto, não dava para inventar nada! O jeito seria encarar aquela
situaçãozinha ridícula. Todos os movimentos daquele dia foram milimetricamente
avaliados, pensados, pesados. Chegou a hora e eu estava ali diante da sala de
aula. Ainda pensava, a cada passo, que poderia fazer a aula sentada, ou de pé
pertinho da mesa, sem sair do lugar. Será que eu conseguiria? E a compreensão
da galera, seria boa? E se eles me pedissem: ah, professora desenha um esquema?
Comecei. Entreguei para Deus e iniciei a aula como sempre.
Passados alguns minutos, percebi que de vez em
quando me esquecia da desgraça. Levava um susto interno e pensava, isso pode
ser perigoso. Inútil. Os esquecimentos passaram a ser mais frequentes e as
peripécias também. Numa dessas, encostei o bendito pé esquerdo no pé da cadeira
de rodinhas que estava do lado da mesa. Sutilmente me dei conta do risco, mas
estava tão empolgada...
— E o transporte
da glicose se dá junto com o Na+, que entra a favor do seu gradiente de
concentração. Ficou claro?
Bem feito! Quem
mandou fazer de conta? No “aro”, senti um chão frio debaixo do meu pé. Quando
vi, alguns alunos olhavam para a sola do sapato presa embaixo do pé da cadeira
e outros para meu pé no chão, apenas coberto com aquela parte de cima do
sapato. Olhei para meu pé, olhei para o solado que tinha ficado a 40 cm dali,
pensei: bem que o chão poderia abrir agora e eu glamorosa como Koré seria
tragada pelas profundezas da terra do andar de baixo e me transformaria em
Perséfone. Pisquei os olhos e nada aconteceu. Os alunos não sabiam o que dizer
e ainda estavam paralisados em suas cadeiras. Alguns desavisados, que não
estavam prestando atenção na absorção da glicose, também não entenderam a
surpresa dos outros. Agora sim, todos em sintonia me olhavam e eu... filho da
mãe, esse Hades! Nunca aparece quando a gente mais precisa dele!
Um aluno super atencioso e prestativo tentou
me avisar que a sola do meu sapato tinha ficado para trás. Como se eu não
tivesse notado. Deve ter fica nervoso, pobrezinho. Fiz que sim com a cabeça.
Minha fisionomia permanecia perplexa, enquanto eu criava planos mirabolantes
para escapar daquela situação. Até pensei em ser eu mesma absorvida no lugar da
glicose! Que salvação! Inspirei. Dei de ombros e me virei para a lousa que
comecei a apagar freneticamente. Parei. Senti-me tão ridícula que não resisti.
Comecei a rir. Virei-me para a turma, ainda um pouco extasiada, e me acabei de
rir. Aos poucos eles também começaram a rir. Cada vez mais alto. Não aguentei,
tive que me sentar na maldita cadeira tragadora de solados .
— Professora, seu
sapato está precisando de um gerontólogo, hein! Gritou um engraçadinho lá de
traz. Voltamos a dar risadas compulsivamente. Depois que já tínhamos chorado de
rir começávamos a nos acalmar. O jeito foi comentar sobre o acontecido.
— Bom, gente, é
nisso que dá você acordar querendo se reencontrar nos objetos do passado. Não
rola. Por mais que seu pé não cresça, o sapato envelhece e pode não servir. Não
insista, desapegue-se!
Eles não
entenderam nada. Rimos um pouco mais até que uma aluna ofereceu sua chuteira
37, eu calço 35, para que eu terminasse o dia. Sem ligar para o modelito,
aceitei na hora. E assim foi que terminei um dia que começou lindo com meu
retorno a mim mesma, percebendo que há objetos e Kareninas que não me cabem
mais, já cumpriram suas missões e agora já não são. Sou outra, com outros
tamanhos, outras roupas, outros pés, outros caminhos.
Amei! Ri muito.... Rsrsrs... Essas faxinas internas e externas são essenciais. Praticar o desapego é uma arte...
ResponderExcluirOi Julie!!! Que bom saber que você passou por aqui. E você tem feito faxinas? Um beijo.
ResponderExcluir