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domingo, 21 de setembro de 2014

Horizontes

Depois de muitas semana sem novidades, o Balaio apresenta a crônica de uma mudança: Horizontes. Boa leitura.




Desde maio acompanhei a reforma para que ficasse tudo do nosso jeito, meu e das minhas possibilidades, ou seria da minha limitação financeira? Tanto faz. Tudo numa sequência pensada e repetida por cada um que me prestava serviço. Primeiro você põe o gesso, que pose vir com a colocação do piso frio. Depois, o piso de madeira, a primeira demão de pintura, a montagem dos móveis e a pintura final. Ah, e antes de tudo isso, as adequações das tomadas e interruptores. Sim, e adequações também da minha ignorância completa de que um apartamento novo é entregue faltando muitos ajustes. Finos e grossos. Tudo pronto e era a hora de mudar.
Contratei uma transportadora, que me ajudaria também na arrumação. Mesmo assim, uns dois meses antes comecei a arrumar caixas e mais caixas com os objetos mais queridos: livros, máscaras e pequenos souvenires das viagens. E foi aí que a mudança começou. A cada caixa fechada e identificada a casa passava a ser menos minha. Era mesmo uma desfiguração. Comprei um rolo gigante de plástico bolha e comecei a catar as caixas deixadas nas esquinas, pelos comerciantes do bairro, nos dias de coleta de lixo. Arrumar meus livros, carinhosamente, nas caixas, era divertido e acabava servindo para me desligar dos problemas da EACH. A decisão mais demorada foi a de escolher uma das transportadoras. Feito isto, estava tudo certo. Até já tinha conferido, uns dias antes, a faxina no ap novo. E na segunda, antes da data marcada, liguei pra transportadora e confirmei a contratação. Estava tudo no lugar. Ou quase tudo.
Uma amiga tinha me dito que se eu precisasse ela dormiria lá em casa para me ajudar com as últimas tarefas e estar comigo na hora da mudança. Só que ela não deu conta de terminar um trabalho e me deixou na mão. Aí tive que decidir o que deixaria de limpar e de arrumar na noite anterior e passar pro dia seguinte, mesmo. Não tinha outro jeito. Enquanto eu tentava não me desorganizar por causa da ajuda que não viria, o telefone tocou.
— Alô. Boa noite. Sim, é ela. Como vai? Tudo. Sim, está tudo certo, mas conversei com vocês hoje à tarde. Como não? Qual é a sua transportadora? Ahhh não querido, eu contratei a Horizonte. Não, não contratei a de vocês, não. Como assim? Nãããão, o que você tem é um pedido de orçamento. Não uma confirmação. Bem, então, foi bom você ligar para confirmar. Cancele, por favor. Por que não? O senhor pode ligar para eles e desmarcar, certo? – a conversa parecia surreal. Enquanto o moço de outra transportadora me dizia que eu tinha contratado o serviço dele e que àquela altura do campeonato não era possível desmarcar, porque os rapazes estavam em outra viagem e os telefones estavam fora de área, e que aquilo teria um custo e blá, blá, blá, eu ia me aperreando de um jeito... – Pois está bem, seu Joaquim. O senhor me manda os e-mails em que eu contrato o serviço e se isso aconteceu eu arco com esse custo, está bem? Boa noite.
            Pensei que não teria sono para gastar naquela noite e que poderia me dedicar à limpeza e arrumação, só que não. Estava exausta. Mas foi inevitável pensar que se eu poderia ter contratado duas transportadoras, também poderia ter contratado três. Valha-me deus! E se amanhã aparecerem dois caminhões na rua, minha nossa senhora! Essa possibilidade existia mesmo, porque o primeiro orçamento foi feito por um site e como eu estava tendo que resolver 7.452 problemas ao mesmo tempo, não seria muito difícil que eu tivesse contratado duas transportadoras. Enfim, peguei no sono.
            Já no dia seguinte, acordei antes do despertador e me organizei para estar pronta quando a campainha tocasse. E antes mesmo de me levantar já ouvi quando o caminhão chegou e os rapazes que desceram dele ficaram conversando na calçada em frente de casa. Gelei junto com o pensamento de que aquele poderia não ser o caminhão que eu tinha contratado. “Qual era mesmo o nome da empresa? Ação, Aline, não, Anninha, Horizonte, mulher. Ah, é mesmo. Horizonte. Horizonte.” Fui na pontinha dos pés até o quarto da frente espiar pelas frestas da janela pra ver se era o caminhão da Horizonte. Ufa! Nossa senhora! como é bom sentir alívio. Agora eu entendo um doido lá te Russas que vivia puxando os cabelos só pra sentir o alívio de parar. Nunca o horizonte visto pela minha janela tinha sido tão lindo. Tudo bem, tudo bem, mas isso não era garantia de que outro caminhão não viria.
            Bom, mas pelo menos o contratado estava lá. Pouco depois eu ouvia a campainha tocar e quatro homens desconhecidos entraram na minha casa. Essa foi a maior experiência de administração que eu já vivi. O bom é que já tinha muitas caixas prontas para eles se divertirem. Os móveis maiores que podiam já ser arrumados no caminhão iam sendo cobertos e deslocados. Nunca vi pessoas com tanta força, como aqueles caras. O seu Raimundo foi encarregado de arrumar meus utensílios de cozinha e ele era incrivelmente delicado com as taças. O Donizete era o mais forte e aperreado do juízo. Deus me livre! A loucura de tantas perguntas e demandas até me fazia esquecer da possibilidade de outra transportadora aparecer. Foi aí que a campainha tocou de novo. Será que eram Marília e Bianca?
            Não, não era. Outro desconhecido diante do meu portão e no horizonte atrás dele, um caminhãozinho de mudanças. “Me lasquei.”
— Dona Ana? Eu sou da Transporte Ação.
— Como você se chama?
— Marcelo.
— Bom dia Marcelo. Querido, deve estar havendo alguma confusão, mas eu confirmei com outra empresa.
— Mas a moça do escritório disse que estava tudo certo. Ela não ligou pra senhora ontem?
— Não, não ligou.
            Depois dessa conversa rápida ele se afastou para entrar em contato com o pessoal do escritório. Fechei o portão decidida a não me estressar com aquilo: eu pagaria o que fosse preciso e não me sentiria culpada. Era preciso entender que em meio a tantas decisões e escolhas, era possível, muito possível cometer enganos. De novo me lembrei do doido lá de Russas. Levei a mão direita até a nuca, deslizei os dedos pelo cabelo e puxei de levinho, depois um pouco mais forte. E aí senti o alívio do doido. Mal pude responder as últimas demandas dos meus ajudantes e já era chamada pela campainha.
            Lá fora, o mesmo rapaz de antes e agora também um homem mais velho e uma moça. Eram os envolvidos na mudança e a moça da arrumação. Ah, e a moça do escritório, pelo telefone, porque eu pedi que ligassem para ela, já que a cópia do e-mail que me apresentavam não dava indício nenhum de que eu tinha contratado o serviço deles.
— Bom dia.
— Olhe eu tenho como comprovar que a senhora contratou o serviço.
— Bom dia querida. Veja, pelo e-mail que me apresentam aqui, não tem não.
— Ou a senhora arca com essa despesa, ou eu vou acioná-la na justiça.
— Olhe querida, não me ameasse porque aí sou eu que posso colocar você na justiça.
— Eu não estou ameaçando, mas a senhora vai ter que assumir esse gasto, porque a blá, blá, blá, blá....
            Por um instante eu me desliguei daquela conversa. Puxei de novo meu cabelo, bem de levinho e voltei.
— Está bem, eu vou decidir o que faço. Bom dia pra senhora.
            Devolvi o telefone para o rapaz e me dirigi ao senhor mais velho, que depois eu soube era pai dele. Ele muito gentilmente me explicou que vieram de muito longe e que ficariam muito gratos se eu pudesse pagar a gasolina. Que deveria ter havido algum engano e que isso e aquilo. A moça também foi muito solícita. Aí acordamos o que seria dividir o prejuízo e assim, fizemos. Depois que eles foram embora já era mais de 9 da manhã e eu pensei que talvez nenhuma outra transportadora fosse mesmo aparecer. De novo o alívio. Lá dentro, a casa ia deixando de ser casa e passava a ser só casca.
— Quem aceita um café? – perguntei só por perguntar, porque o café era mesmo pra mim. Precisava me acalmar para não perder energia com aquela confusão. Inutilmente tentei encontrar um lugar onde não houvesse um desconhecido para tomar meu café em prece. Tudo bem. Tomei mesmo assim. Logo depois as meninas chegaram e eu pude me sentir mais segura para empreender aquele trabalho de Hércules.

            Graças a arrumação tão antecipada dos livros, às 11 e meia já estávamos a caminho da nova morada. Tão estranho sair de um bairro querido. Os sentimentos eram muitos e confusos. Até vergonha eu sentia por estar me mudando. Pode um negócio desses? Tempos depois, lá estávamos nós descarregando os móveis, as caixas, as malas, os objetos, tudo, na casa nova. À noite, quando as meninas foram embora, muitas caixas já estavam esvaziadas, muitos livros na estante, louças no armário e o espírito exausto, porém contente. Diante da mini sacadinha, um lindo botão amarelo, que subia lentamente pelo céu, me dava as boas-vindas. Boas-vindas à casa nova, boas vindas ao novo horizonte. 

terça-feira, 8 de julho de 2014

Creme Nivea

            Em época de Copa do Mundo a gente fica, sempre que pode, longe do computador. Mas hoje, pra comemorar a semifinal mais uma Crônica de Balaio!           


            No dia seguinte ao aniversário da Dona Rosa, a casa da tia Tota estava cheia. Eu e minha mãe, três das Antoninas e a Ionele e o Lúcio. E o Lúcio é uma das muitas exceções àquela máxima que diz que mulher fala mais que homem. Até a Ionele, que fala pelos calcanhares, precisa pegar senha pra falar, quando ele está. Pois naquela manhã não foi diferente. Quando me levantei estavam todos ao redor da mesa. Umas já tinham desjejuado, outras estavam terminando e o Lúcio falando, contando, dizendo, explicando. Ai ele foi até o quarto tinha dormido e voltou com uma sacola. Cada vez que a mão saía da embalagem trazia consigo um pacotinho colorido brilhante.
            — Esse é um presente ótimo! – ele se elogiava – Barato e útil! E igual, que é pra ninguém brigar.
            Eu dei risada com a cena e apesar de ter sido a última a ganhar, fui a primeira a abrir a lembrancinha. Era uma lata azul de creme Nivea. Ligeiro como quem rouba, aquela lembrança me trouxe outras: férias de julho... viagem em família para Juazeiro do Norte... casa do Marcos. Mal chegamos e meu pai logo inventou um desculpa para sair de casa: fazer um mercantil para colaborar com nosso anfitrião. E fomos eu, painho e Marcos. A cidade era muito maior que Russas. Tantas lojas, tantas casas. Eram tantas as paisagens novas, que só percebi que não tinha mais unha pra roer quando doeu o dedo. Pois é, eu tinha voltado a roer unha e começava a sentir umas dores de cabeço inexplicáveis.
            Tinha hora que os dedos ficavam tão ressecados que era necessário umedecê-los, aqui que fosse com saliva. Minhas mãos, que já completavam 11 anos, tinham voltado a habitar mais minha boca do que o resto do mundo. Até acho que vem dessa época minha loucura por hidratante para as mãos. Mas a saliva engana. De cara, ela umedece, para logo em seguida ressecar. O alívio só vinha quando eu usava os cremes de minha mãe.
            Quando chegamos no supermercado, eu me separei do bando e fui passear sozinha entre as gôndolas. Sempre gostei da arrumação dos produtos nas prateleiras. Paro na sessão de higiene pessoal, hipnotizada pelo mar azul dos produtos Nivea. Mas fui capturada especialmente pelas latinhas de hidratante. Tão lindas e pequenas, tão adequadas ao bolso de uma menina com mãos ressecadas. A primeira reação àquele desejo foi pegar uma e abrir. Mas não tive coragem de usar. Foi exatamente nesse momento que me surpreendi com meu pensamento de que eu poderia pegar aquela latinha. Tive tanta vergonha, que senti minhas bochechas mornas.
            Fechei a latinha contra mim mesma e a devolvi para a prateleira. Até pensei que estivesse livre da tentação. O problema é que eu não consegui esboçar nenhum movimento que me tirasse dali. “Já sei! Vou pedir pro painho! Esquece. Ele não vai nunca comprar isso. Mas eu vou pedir e insistir tanto, que... Não vai adiantar nada. É melhor pegar logo.”
            Contra a vontade de metade de mim, procurei meu pai. Ele já se encaminhava para o caixa. Talvez se eu colocasse no carrinho sem eles ver, desse certo. Fiz.
            — O que é isso, Anninha? – não respondi, apenas mostrei – Não, disso nós não precisamos. Devolva lá vamos embora. “Como não precisamos? Eu preciso e muito! Que que eu te disse? Eu te disse, não disse? ”
            Caminhei desoladamente lenta até a prateleira, decidida a devolver a desgraça da lata. Com movimentos automáticos coloquei e tirei a lata da prateleira um sem número de vezes. “Ah, anda logo, bota isso no bolso! Ninguém tá vendo e ninguém vai saber. Mas... mas se o painho descobrir? E quem vai contar? Eeeeu que não vou.” Enfiei a latinha no bolso da bermuda e vi milhões de olhos nas prateleiras, no teto, no chão, em todo lugar. Os de Deus só apareceram depois.
            Quando cheguei ao caixa, meu pai já passava os últimos produtos. Passei por trás dele sem nem olhar para a moçado caixa. Vai que ela tinha a visão além do alcance?! Com a mão disfarçando o volume redondinho no bolso, entrei logo no carro e fiquei quieta. Mas só por fora. Porque por dentro eu sentia uma Amazônia de sentimentos: culpa, euforia, satisfação, orgulho, medo, tudo! À noite quando fomos dormir dei um jeito de ficar com a latinha nas mãos. Ali a empolgação já tinha passado e eu me corroía pela frustração de não poder contar pra ninguém, mostrar pra ninguém, compartilhar com ninguém! De que tinha adiantado? É, realmente o crime não compensa.
            — Vixe menina! Pra onde tu foi, heim?
            — Eita Lúcio, tão longe que tu nem imagina. Essa lata de Nivea me levou pra uma visita que fizemos a um primo, em Juazeiro. Lembra mãe?

            — Lembro sim. Aliás, lembro também que tu andava pra cima e pra baixo com uma latinha de Nivea. Quem foi que te deu?

terça-feira, 6 de maio de 2014

Antônia, Tota, Toty

Mais uma Crônica de Família para encher o Balaio de delicadeza e ternura.  

            O ano era o de 1937. Isso mesmo. O ano em que Getúlio Vargas outorgou a nova Constituição, implantando a ditadura do Estado Novo. Também foi nesse ano que a rádio Tupy entrou no ar e Orlando Silva gravou Carinhoso, de Pixinguinha e João de Barro - “meu coração, não sei porque, bate feliz quando te ver...” Ainda naquele 37 foi inventada a caneta esferográfica, pelo húngaro Ladislao Biro e a primeira fotocopiadora foi patenteada nos EUA. Muitos ganhos. Mas foi este mesmo ano que o Brasil perdeu Noel Rosa. Pois é. O país perdia um ícone na música e eu ganhava uma tia. Quer dizer, ganhar não ganhei, porque ali eu ainda nem era. Mas que foi um ganho foi. No dia 22 de setembro de 1937 nascia Antônia Teixeira, que jamais seria chamada pelo nome de batismo e sim por uma apelido, que depois eu soube, é destinado aos Antônios e Antônias: Tota. Ou no caso dela, Toty. É assim que ela assina seus quadros e textos.
            Não foi por caso que comecei a conversa com dados históricos. Tem tudo a ver com ela, que ainda muito moça se formou professora na Escola Normal em Crateús e por anos a fio ensinou Estudos Sociais. Começou ensinando na Escola da Dona Rosa Morais, prima legítima de sua mãe e sua alfabetizadora. Depois foi professora no Colégio Pio XII, cujo proprietário era o tio Zezé, que antes era o Monsenhor Bonfim e depois foi o companheiro cansado da tia Joaninha.
Nascer no ano de implantação do Estado Novo foi só uma tolice da História. A Toty sempre demonstrou ter liberdade e independência. Tanto, que casou tarde e com um homem mais novo que ela, o que era bem incomum naquele tempo. Acho que minha tia sempre teve a liberdade do artista e a elegância do esteta. E por causa dessa história toda ela é sempre requisitada para escrever os discursos, as cartas, as falas bem articuladas, com a medida certa de emoção, que tanto enobrecem a invenção de Biro.
Agora em outubro, a cidade comemorou o centenário de Dona Rosa Morais. Claro que a Toty não só participou da comissão organizadora, como preparou lembranças delicadas, dedicou-lhe um texto, como inevitavelmente seria, e junto com outros ex-alunos ainda cantou na lá frente. Dos nove ex-alunos, que vi lá no palco, um terço era de Azevedas: Toty, Joaninha e Madalena. Todas organizadoras, cada uma no seu reino. E ela, a Toty, é a senhora das pequenas coisas, dos detalhes e da mansidão. Também é a desenhista oficial das árvores genealógicas. A primeira, ela fez, se não me engano, na comemoração das Bodas de Diamante dos meus avós. Fez treze. Uma para cada filho e outra pro vovô e a vovó. Dá para imaginar quantos nomes precisavam caber numa árvore de doze galhos? Mas com a letra dela coube! E a ideia foi sendo sofisticada.
A última versão da árvore ela preparou para entregar a cada irmão durante a celebração dos cem anos de nascimento de seu pai. E não foi desenho não. Cada irmão recebeu um galho e uma caixa de papelão bem bonita, com a foto dos pais sobre a tampa e sua própria no verso. Dentro, vinham pequeninas molduras 3 x 4, feitas de biscuit com a foto de cada um daquele galho. E o tronco, sobre a mesa bem arrumada, só esperando os galhos revividos carregados de fotistórias penduradinhas. Aí cada filho, em ordem alfabética de nascimento ia incluindo seu galho. O mais divertido era ouvir os “agora tu Zé, agora a Joaninha, é tu Socorro, cadê a Madalena? é a vez dela...” Foi uma festa tão linda, que os olhos todos ficaram sorrindo.
Quando crianças era na casa dela que ficávamos com minha mãe durante as férias em Crateús. A casa, as roupas, o universo dela inspiravam a elegância e a atmosfera da artista, que eu imaginava. O desenho de sua casinha com tantas plantas, baixinha, aconchegante, me dava sempre a sensação de estar entrando num mundo de outro mundo. Ainda hoje eu tenho um não sei quê de excitação com o veludo e o dourado. Quando ela começou a reforma nessa casa, foi morar na casa da Coronel Jiló, onde morou com sua avó durante a infância. Não só ela, mas cada um que ia completando seus sete aninhos, saída do Curral Velho, que ficava a uns 20 quilômetros da cidade, e ia morar com a Mainha, para estudar. Era assim que eles chamavam a avó. Quando a tia Tota morou lá, pela segunda vez, o sobrado, que durante o ano era o quarto do Tino, virava um albergue nas férias! Mas diferente de um albergue, lá o dia começava igual para todo mundo, que estivesse hospedado, e bem cedinho.
O sol ainda limpava a remela dos olhos e lá ia a tia Tota subindo a escada de madeira, seguida pelos sons dos próprios passos, com uma bandeja carregada de copos da Tupeware cheinhos de leite com nescau. Ela nos acordava com aquela voz mansa e entregava o copo. A nós cabia tomar o leite no gute gute, praticamente dormindo. Limpávamos o bigode de leite com a borda do copo e nos deitávamos de novo. Sua marca registrada. Duvido que haja um primo ou prima que não lembre disso! Mas ruim mesmo era pro coitado do Júnior, hoje seu genro, que quando namorava a Jô e se hospedava por lá, tinha que tomar o bendito desjejum sem suportar leite. Mas isso ele só confessou outro dia. Essa é a Dona Toty, que nem a mais avançada fotocopiadora vai conseguir reproduzir!
Conhecedora do mundo através dos livros, só há pouco tempo teve a oportunidade de desbravá-lo com suas próprias pernas. Foi depois que a vovó decidiu que já estava na hora de encontrar meu avô, que as Azevedas resolveram ganhar esse mundão de meu Deus e começaram a fazer viagens, muito simples para alguns, mas para nós, épicas! E foi na primeira viagem delas para a Europa que ela ganhou o título de MC Toty. Sendo ela a senhora das coisas meticulosas, precisas e cuidadosas não poderia jamais ser a senhora da ligeireza. Isso fica pra Socorro ou pra Madalena. E foi aí que durante os passeios em Lisboa, sempre se estava a esperar por ela. De certo, encantada com tudo aquilo que via. Eu faria o mesmo: me demoraria diante da mais simples visão do velho mundo. Claro que isso virou motivo de chacota entre as irmãs.
— Cadê a Toty? – perguntava uma.
— Ah, a mata capim deve tá examinando a... – respondia a Socorro aperreada.
— E Toty, heim, cadê? – perguntava outra.
— Ah, a mata capim... já viu! – respondia a Socorro gesticulando com se imitasse a lentidão da irmã.
O MC vem de mata capim que é tudo que se demora tempo suficiente num lugar a ponto de matar o capim sob seus pés. Aí o Brenno que é gaiato que só cunhou o novo apelido moderno pra tia: MC Toty. Isso virou a razão das melhores rinchadeiras entre elas. Sim, porque se há uma habilidade que é de todas é a risada. Como elas se divertem quando estão todas juntas. Pois é, mas a Toty não é só esse anjo de candura, não.
Nessa colheita de histórias sobre a família da minha mãe fiquei sabendo de uma espetacular. Foi a mainha que me contou. Era uma época do ano de festividades religiosas e meus avós tinham ido à quermesse no Santo Antônio, um vilarejo mais ou menos perto da fazenda. Elas, que têm apenas um ano e oito meses de diferença, tinham ficado em casa com os irmãos. Aquele tempo o maior cuidava do menor, não importando o quão pequeno fosse o maior. Acredito que minha mãe tivesse seis e ela quatro ou cinco anos. O que minha mãe me disse foi que como ela, Vilanir, era a mais velha e portanto, tinha cuidado da irmã, ganhou de presente a boneca de celulose que meus avós deviam ter ganhado nas brincadeiras da quermesse. Pois a Toty, num ato de fúria infantil, não teve dúvida e jogou a pobre boneca no fogão a lenha. A mainha conta que numa lambida só o fogo levou a bonequinha. Aí deve ter sido aquele chororô e briga. Mas isso eu só imagino porque ela não contou nada. E o melhor é que a própria Toty não se lembra do episódio. Mas tem nada não, tem a Vilanir pra contar.
            Hoje elas devem se encontrar mais tarde lá em Crateús, pela triste ocasião do velório da Marizinha, que foi criada junto com elas. Vão começar tristes e vão chorar, como de costume, mas sempre terminarão dando risadas das histórias das quais irão se lembrar para manter viva a memória da amiga. A Dona Toty, com certeza, está preparando alguma homenagem. Porque ela é assim: a senhora da generosidade que há nos pequenos gestos de carinho. A senhora por quem meu coração vai sempre bater feliz e meus olhos sorrir quando a encontrar. E eu sei porque.