Mais uma crônica de balaio para divertir e começar bem a semana. Boa leitura!
Amanhã é aniversário dos meus irmãos. Sim, eles são
gêmeos. Não, não. São muito, na verdade, totalmente diferentes. Gêmeos bi
vitelinos. Acho que isso foi uma das primeiras palavras do jargão biomédico que
eu aprendi. Claro, e sempre foi muito necessário, pelo menos para mim, porque
meus irmãos nunca, em momento nenhum, nem mesmo dentro do útero de nossa mãe,
se pareceram. Um é loiro dos olhos verdes e o outro é moreno dos olhos azuis. É,
e os danados são lindos! E amanhã eles completam 38 aninhos. Meus irmãozinhos
mais novos! Hoje isso já não faz muita diferença, mas já fez. Então vamos ao
início. Entre o meu nascimento e o deles, mamãe perdeu um filho que nasceu e
logo morreu. Não pude avaliar muito o estrago que isso causou em nós,
principalmente em meus pais, mas posso imaginar. Num daqueles dias encontrei
minha mãe chorando e disse a ela pra não se preocupar que o papai do céu
mandaria outro. E mandou mesmo. Mandou dois!
Dose
dupla de cuidado, fraudas, sapatinhos, roupinhas e leite. Tanto, que eles
precisaram de uma ama de leite. Painho conta que ele secava as fraudas no ferro
de passar, porque não dava tempo enxugarem sozinhas, porque pra completar eles
nasceram num janeiro de bom inverno. E quem nasce num inverno bom no sertão já
nasce abençoado pela natureza. Outro dia uma amiga perguntou à mamãe como tinha
sido criar dois de uma vez com mais uma pequena e ela disse assim, depois de
suspirar profundamente: minha filha... eu venci. E deve mesmo ter sido uma
vitória. Porque só sabe o que são gêmeos, quem convive com eles. Eu coitadinha,
tive que assumir meu papel de irmã mais velha muito, muito cedo. De manhãzinha,
a mamãe colocava a dupla em seus respectivos carrinhos xadrez na calçada para
pegar sol. E quem é que ficava cuidando deles? A irmãzinha aqui. Pobre criança!
Já aos três aninhos eu me lastimava reclamando que aqueles meninos só me davam
trabalho!
Uma vez,
enquanto eu pastorava aqueles dois ratinhos miúdos, nascidos de 8 meses, fiquei
curiosa com aquelas bolinhas de cores diferentes. Não, não, as bolinhas a que
me refiro eram os olhos! Por sorte o papai chegou antes que meu indicador
curioso provocasse qualquer dano mais sério. Eles nem choraram! E olha que o
Ney era chorão. Todo dia depois do almoço, a mamãe nos botava pra descansar. Na
verdade o descanso era pra ela, porque nós descansávamos praticamente
obrigados. Nessa época ainda morávamos na casa velha. A porta do nosso quarto
dava para a sala de jantar onde ficava a televisão e a máquina de costura da
mainha. Eu acordava e ia pra sala. O Júnior acordava e ia pra sala. O Ney, bom,
ele acordava caminhava até o portal do quarto, colocava a cabeça olhando pra sala
e chorava. Ninguém entendia porquê! Aí a mamãe chamava ele pacientemente: venha
cá meu manteiga derretida...
Diz a lenda
que ele era manhoso porque durante o parto quebrou o braço. E foi mesmo. Saiu
da sala de parto já com o braço no gesso. Mas parece que ele gostou foi muito
da ideia porque depois quebrou o outro braço e as duas clavículas. Nas fotos de
criança, de tempos em tempos lá está o Ney com gesso. Ele era o preferido da
tia Lourdes. E o Dudu da tia Artemis. Dudu era como o Ney chamava o Júnior. O
Ney falou primeiro, andou primeiro, nadou primeiro, andou de bicicleta primeiro,
mas quem nasceu primeiro foi o Júnior. E talvez por isso, por ser o irmão mais
velho, ele sempre foi mais cuidadoso com os ossos. Em compensação no dia em que
ele quebrou o primeiro e único, deu tanto trabalho... Outro dia da nossa
infância, numa daquelas viagens que o papai e a mamãe faziam até Fortaleza para
fazer o mercantil, nós passamos o maior medo com uma chuva de trovão. Não, não
ficávamos sozinhos, mas a mamãe era nossa coragem. Quando ela chegou, o Júnior
correu, agarrou em sua perna e começou a bater nela chorando e dizendo que
estava feliz porque ela tinha voltado e que estava com muita saudade. Isso
devia ser o jeito dele de exercer a responsabilidade de irmão mais velho.
Às vezes
eu fico pensando que gêmeos devem ser pessoas menos propensas à solidão. Não
parece? Afinal eles foram gerados juntos, nasceram juntos, cresceram juntos.
Eles não sabem o que é um dia de vida sem um irmão. Por outro lado, a perda de
um irmão gêmeo deve ser sentida duas vezes. Mas essa hora vai demorar. E eu, graças
a Deus, fiquei bem pouco tempo sem eles. Só que por causa deles, quando criança
eu sonhava em ser adotada só pra ter uma irmã gêmea em algum lugar. Olha que
loucura!
Gêmeos também devem ser
pessoas que se incomodam muito pouco, ou quase nada quando chegam numa festa e
encontram alguém vestido igual. Eles devem pensar que é só mais um irmão. Afinal,
estão acostumadíssimos a ter ao lado um outro ser vestindo um modelo igual de
cor diferente ou pior ainda, nada diferente. A mamãe, que sempre foi uma mulher
sábia, variava uma coisa ou outra e mesmo sem saber do meu desejo de ser gêmea
também, me incluía de alguma forma, compondo modelitos para trios. Mas isso eu
só vejo hoje. Era importante me sentir parte.
E a vida
foi ficando mais divertida pra mim quando passamos a brincar os três juntos.
Apanhamos juntos também. O Ney era quem tinha as piores ideias. Já eu e o
Júnior executávamos. Um dia a brincadeira era enterrar o Ney. Vivo, claro! E
como o objetivo não era mata-lo tínhamos que criar um jeito dele ficar respirando
embaixo daquela milanesa de terra. Foi também nesse dia que apanhamos os três
de colher de pau. Eu a primeira, como de costume, depois o Júnior e por último
o manteiga derretida. A sequência era sempre: Anna, Júnior e Ney!!! O Júnior
não chorava nunca, o Ney começava antes mesmo de levar a primeira palmada. E
eu, se o Júnior não chorava, eu não podia nunca dar o braço a torcer! Sim
porque o Ney não mobilizava muito meu espírito ruim, não. Mas o Júnior... Implicávamos
sempre um com o outro. Como a gente brigava! Certamente porque somos muito
parecidos e nos irritava olhar pro outro e ver um espelho.
Mas a
mamãe não se apresentava só para os atos punitivos, não. Ela nos deixava nadar
na montanha de roupa suja esperando que a dona Lúcia chegasse para buscar a
trouxa, nos fazia ajudá-la a lavar área lá de trás botando sabão no chão, onde
escorregávamos de barriga, de costas, de todo jeito. Depois ninguém reclamasse
dos arranhões incontáveis. E ela também pregava suas peças na gente! Quantas
vezes elas não nos deixou, os três abestadinhos, sentados no sofá com um dos
dedos indicadores no umbigo? Pra quê? Essa invenção dela parecia mais uma
garrafada dessas que se encontra nas feiras nordestinas, que serve pra tudo,
sabe? Pois é. O dedo no umbigo servia para engrossar e fazer a chuva demorar,
já que não podíamos tomar banho nos primeiros pingos, e para fazer a televisão
voltar ao ar, quando o que aparecia na tela era aquele chiadinho clássico das
TVs analógicas. Ê dona Vilanir... quanta sabedoria, não?
A rua
era nosso domínio, o quintal um reino, as idas de bicicleta à escola uma
jornada de heróis. E na escola era legal ser a irmão dos gêmeos. Quando eles
estavam na alfabetização, eu já me sentia uma grande irmã mais velha. Na mesma
manhã fui buscar o Ney na diretoria e salvar o Júnior. A ida à diretoria
especificamente por aquela razão me dava uma sensação de... como é?
autoridade... não, respeito. Isso. Caminhei até a sala da Irmã da Graça me
sentindo RESPEITÁVEL. Foi ótimo. Minutos depois sou convocada a atravessar o
colégio para salvar o Júnior que apanhava de um menino bem maior que ele.
Famoso aquele peste. Batia em todo mundo, mas no meu irmão, não. Encharcada com
a boa sensação de respeitável, me entreguei à tarefa. Enquanto a
respeitabilidade começava a se transformar em uma pequena arrogância e
caminhava pisando duro o chão. Aí veio a vida e eu pisei na areia que recobria
o terreno até as salas da alfabetização, que ficavam mais afastas. Tinha
chovido muito e a areia de rio incha com o excesso de água, mas parece estar
encharcada. Pisei com o pé direito e ele afundou tanto, que veio areia até a
metade da canela. Como isso poderia acontecer a uma irmã mais velha tão
respeitável? Sofri com aquilo. Mas segui determinada e quebrar o menino ao
meio, ainda mais agora que estava furiosa com as meias e os kichutes ensopados.
Argumentos e movimentos agressivos, que definitivamente iriam amedrontá-lo e
nunca mais ele iria se meter com os irmão da Anna Karenina, eram ensaiados
minuciosamente na minha cabeça. Quem me conhece deve estar pensando: como ela
mudou! Não mudei nada. Cheguei, tirei meu irmão de perto dele, não encostei a
mão no maldito do menino e só perguntei se o Júnior tinha se machucado. Falei
pro desgraçado não fazer mais aquilo e o ameacei com a Irmã da Graça. Que
vergonha... pois é. Mas ainda hoje eu viro aquele bicho se mexem com os gêmeos.
A gente pode se matar, mas ninguém abra a boca pra falar mal deles. Só eu.
Ahhh...
quantas lembranças tão boas que nos aproximam tanto e me fazem sentir uma
gratidão enorme porque amanhã, quer dizer hoje eles completam 38 aninhos. O que
teria sido deles sem a minha proteção? Eles tiveram muita sorte. Mas eu também,
e em dobro! Faz uns anos que tenho a sensação de que ter irmão é muito bom!
Então, que vivamos juntos muitos anos mais e ai de quem inventar de furar a
fila na hora da morte, heim! Dessa prerrogativa de primogênita eu não abro mão!
De Zulmira: Parabéns!!! Lendo a sua bela crônica voltei ao túnel do tempo. Que menina corajosa! Eu te admirava louvando ao senhor. Você tinha uma voz linda, meiga e suave. Mesmo eu sendo uma adulta, me espelhava na sua coragem. Que Deus lhe abençõe.
ResponderExcluirNossa, que lindo ler isso! Fico até errada lendo um elogio assim tão corajoso! Fico feliz quando meus textos recuperam boas lembranças. Obrigada pela visita!
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