Olá minha gente querida, aqui está mais uma Crônica de Balaio. Esta postagem dedico a minha amada cunhada Karinne, que gostou muito desse texto quando leu e topou o desafio de traduzir o "Encantador de traças" para o espanhol. Valeu, cunhadinha. Boa leitura, pessoas!
Conta minha mãe, que da primeira vez que ela me
banhou eu enferrujei. Já nasci assim, com a pintura de qualidade duvidosa. Deve
ser um problema de quem nasce mais no final do ano, quando a matéria prima
disponível já começa a ficar escassa. Pois é, desde então, o que poderia ser
uma aversão virou uma obsessão. Sempre adorei tomar banho! Talvez por isso,
meus banhos tenham sido alvo de críticas - “Eita, a Anna vai entrar no
banheiro”. “Não Anna, deixa eu ir primeiro. Senão, hoje a gente só sai amanhã”.
“Anninha, minha filha, há meia hora você está nesse banho!” - Nossas casas
sempre tiveram só um banheiro. Por aí se tira o quão polêmico era o tema. E
assim, eu cresci com pouquíssima tolerância para o suor. Como eu saberia se não
era ele o responsável pela ferrugem? Mas bebê, nem sua! Bom, melhor evitar.
Principalmente, quando se nasce e cresce no sertão do Ceará, aprendendo a se
equilibrar na vida sobre as duas rodas de uma bicicleta. E era de bicicleta que
íamos e vínhamos para e de qualquer lado. Inclusive para a igreja que ficava a
uns 3 km de casa, no alto de um tabuleiro.
Naquela
época, a igreja tinha uma programação diversificada e sua força missionária nos
levava a lugares distantes da cidade. Detalhe, alguns, tão longe, que não era
possível ir de bicicleta. Era o caso do Sítio Paraíso, aonde todos os domingos,
uma pequena comitiva, que ia de carro até lá, realizava a Escola Dominical,
depois do almoço, e o culto de louvor, depois do jantar. Lembro-me de
participar dessas atividades desde muito pequena. E quando fui percebendo que o
intervalo entre a Escola dominical e o culto da noite era tempo suficiente para
um banho, ainda que rapidinho, se é que eu seria capaz dessa peripécia, passei
a planejar argumentos para convencer minha mãe, e depois a dona da casa, de que
um banho não faria mal a ninguém. Ainda que só eu tomasse. Eu imaginava que aquele
ato poderia beneficiar toda a comunidade. Por quê? Ora vejamos. Eu estava no
auge da adolescência. E é na adolescência que o corpo começa a exalar cheiros,
até ali, inexistentes. Claro que esse argumento eu jamais usaria! Mesmo porque,
o banho para mim era um ritual não só de limpeza.
Engraçado
é que eu não me lembro de ter usado o banheiro da casa onde eram feitas as
reuniões lá no Sítio Paraíso, antes do dia em que tomei aquele banho. Nesse
dia, percebi como somos capazes de criar fantasias contra a realidade que
vemos. A casa era de barro prensado contra uma trama de varas. Dava até para
ver as marcas dos dedos na tentativa de alisar as paredes, pintadas com cal por
fora. A cobertura era de telha mesmo e para o quintal dava um alpendrezinho
coberto de palha da carnaúba, com uma idéia de pia embaixo e dois grandes potes
de barro, ao lado.
- Irmã Zilá, você pode arranjar um pouquinho
d’água para a Anninha se molhar?
- É para agora, dona Vila. Já levo lá, Anninha. –
“Onde?” – Pensei. Minha mãe tinha resistido em levar a diante meu pedido,
porque além da água era necessário incomodar a irmã Zilá, por um sabonete e um
trapo de pano limpo para eu me enxugar. Não tínhamos levado nada.
- Está aqui um paninho. É velho, mas está
limpinho, irmã. – Disse a dona Zilá me fazendo segui-la até o fundo do quintal,
carregando, de um lado, um pequeno balde cheio d’água e do outro um pano velho,
no ombro, e um naco de sabão em barra azul, na mão.
Até ali eu ainda não
sabia aonde era o banheiro. Depois de darmos alguns passos em diagonal no
quintal e passarmos embaixo de um embuzeiro, notei um cerdadinho de mais ou
menos um por um, com paredes de palha e estaca. Era o banheiro. A cobertura? O
céu. O piso? A terra. O mesmo barro das paredes. Do lado que dava para a casa, até
que as folhas secas tapavam bem o que se fizesse lá dentro. Já para o outro
lado, o que me separava do resto do mundo era uma cerca de paus tortos
colocados um ao lado do outro. Eu me sentia mais no mundo do que em um
banheiro. Quando vi aquilo, pensei em desistir do meu ritual. Êpa, no cercado
ao lado passavam cabras, bois e porcos. Xii... algum bípede de chapéu, agora ou
depois, também passaria. Morri de vergonha e suei na testa. “Ah, Anna. Eu não
vou tomar banho aqui, não! Como não? Pois se a gente toma banho quase desse
jeito na fazendo da vovó? Ah, mas é diferente, é no cacimbão. Ah, mas a irmã
Zilá teve todo esse trabalho para nada? Vai saber o que um balde d’água
significa aqui. Olha esse pano aí, e é sabão o que ela trouxe! O pano está
limpo. Mas tem um cheiro estranho. Se eles usam isso eu também posso usar. E o
chão? Isso vai virar uma lama!”
- Anninha, não demore não, que de noite fica muito
escuro. – Disse a dona Zilá, deixando o pano pendurado em uma estaca e o pedaço
de sabão preso em uma forquilha. Foi aí que eu me apavorei. Perto do Equador o
sol se levanta e se deita com uma rapidez impressionante! Logo estaria tudo
escuro. Ela saiu e eu paralisei. Olhei o balde, o pano, os bichos do outro lado
da cerca, o céu e o suor que brotava dos meus poros e tomei a decisão.
Definitivamente era o suor e não a água o culpado pela maldição da ferrugem.
Acreditei profundamente nisso e comecei a tirar a roupa. Agora o que me
preocupava não era nem a noite, nem o pano, nem o sabão. Era a vergonha. Eu
sentia vergonha da palha, dos paus, do céu, de tudo! Para completar a agonia,
um porco, que eu não tinha visto chegar, começou a fuçar ao pé da cerca, uma
pocinha de lama ensaboada. Que susto eu levei! A essa altura, dá para imaginar
o quanto meu corpo encolhido e amedrontado contava ao céu tudo o que eu sentia
e pensava. Roupas na cerca, cuia cheia de água e o melhor era me agachar para
evitar que a lama respingasse muito alto. Preferi ficar de frente para o porco
a dar-lhe as costas. Vai saber... Além de tudo, eu tinha que fazer um cálculo
matemático e saber quanto de água eu poderia gastar para me molhar e ainda
sobrar para depois tirar o sabão. “Toma desavisada, ainda vai inventar banho
fora de casa?”
Ainda bem que me veio
à memória uma noite de calor em que eu e minha mãe tomamos banho nuas, na beira
de um açude perto de nossa barraca, durante um acampamento. Aquela memória foi
libertadora. Tudo bem que não havia água suficiente para eu me esconder dentro
dela, mas fazer o quê? Me dediquei à execução daquele trabalho para que ele
terminasse antes do por do sol. Assim foi. Nunca tomei um banho tão rápido na
vida! A última cuia d’água derramei sobre meu rosto como quem ora. “O que eu
não faço, por um banho...”
- Anninha! Deu certo filha?
- Já terminei mãe! – Gritei lá do fundo do
quintal. O porco se assustou e saiu fuçando o rego que a água fazia no terreno
alheio. Já vestida, pude achar lindo o por do sol no sertão e caminhei
cuidadosamente até a casa, evitando sujar os pés.
- E o pano minha filha, deu para se enxugar? – Perguntou
a dona Zilá toda satisfeita por ter atendido meu pedido.
- Hãm, hãm. – Respondi balançando a cabeça para
frente e para trás.
- É, irmã Zilá, se não se enxugar, ela enferruja,
sabia? – Disse minha mãe rindo e me esperando na porta dos fundos.
Se
meus banhos já eram cheios de história, depois desse, então, passaram a ser
momentos deliciosos do meu dia. Não apenas para limpar o suor e evitar a
ferrugem, ou para me preparar para o dia de trabalho ou o descanso da noite, mas
também para recuperar a disposição, o frescor e a alegria, um verdadeiro
remédio.
Karê,
ResponderExcluirSou obrigado a jogar a toalha! Seus "causos" do Sertão nordestino são muito engraçados! É lógico que um porco fugiria do banho, assim como o Cascão, do meu xará Mauricio de Souza, também fugiria. Ainda bem que hoje seus banhos precários são "águas passadas"... Mas que era gostoso tomar banho "de canequinha" era... Só de pensar em tomar banho "de canequinha" no inverno... Até me arrepiei! Quer saber de uma coisa? Vai tomar banho!
bj,
Mauzinho
Não é que me deu uma vontade de tomar um banho demorado e farto, menino? Um banho para me despedir dessa tarde de segunda-feria dia 19 de março e saldar a noite que vem por aí. Pois pronto. Vou tomar banho! Beijo, Mauzinho.
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