Esta crônica foi escrita em agosto de 2011 e mostra um pouco o meu encantamento com esta pessoa maravilhosa, de nome estranho e simplicidade tibetana. Infelizmente, há alguns dias eles nos deixou e foi pintar o além com suas cores fortes e traços de cabra da peste. Uma forma de declarar meu amor a esse ser humano de altíssimo quilate. Pra todos que, como eu, estão sofrendo sua falta, meus sentimentos.
Desci
do carro e, do outro lado da rua, olhei a casa 197, logo em frente. Vestida de
amarelo bem velho e muito cansado tinha portões de ferro, que tentavam bravamente
parecer brancos. Seria ali mesmo? Aquela modéstia não condizia com minha
imaginação bem adubada do que seria sua casoficina. Com apenas cinco passos
atravesso a rua, desviando de poças d’água da chuvinha daquela madrugada. A
cada passo a brisa vinda do mar recém amanhecido me acariciava. Nem assim aliviava
a tensão. O muro baixinho e a grade de ferro me deixavam ver um homem grande
sentado a uma mesa improvisada, rabiscando. Mesmo de longe dava para ver a
pequena varanda da casa transformada em um arremedo de ateliê. “Deve ser ele” – pensei. Estava bem no meio
da rua quando senti vontade de dar meia volta volver, mas as pernas continuaram
obedecendo ao comando de atravessar. Seguimos. Na noite anterior eu não tinha
dormido direito, só ensaiando como me comportaria diante dele, o que diria,
sobre o que falaria para não parecer idiota. Inútil. Além de dormir mal agora
estava ali sem a menor condição de grandes elaborações.
Nem bem
pisei na calçada, ele percebeu que eu me aproximava e levantou-se devagar. Procurou a chave do cadeado que mantinha a
grade fechada, mas não achou. Entrou em casa, depois de acenar para que eu
esperasse, enquanto eu dizia bom dia do jeito mais polido que consegui. Acho
que ele nem ouviu. Foi aí que saiu com um chaveiro na mão, abotoando a camisa
de estampa grande e colorida, já comentando que - a Flora, minha neta, sempre
esconde a chave. Mas é sem querer, sabe? Eu ainda aguardava antes do primeiro
portão, mesmo que esse estivesse entreaberto. Pela cara, ele só deveria ter
sido fechado nos primeiros anos de sua juventude, o que parecia ter sido há
muitos anos atrás. Contornei a parte fixa ao chão por um ferrolho e entrei. Do
lado esquerdo, o murinho terminava na parede da casa vizinha onde estava
pintada, bem grande, uma cara de sol e outros motivos do litoral sertanejo.
Parei, reverentemente, e deixei que as figuras me olhassem. Como em Jericó, o
sol parou.
Anos
atrás, eu tinha visto suas pinturas em uma livraria de Fortaleza e fiquei
encantada, perplexa, extasiada, absolutamente tocada por suas formas tão
nordestinas e suas cores. Ah... suas cores!! Desejei um quadro seu. Sim,
desejei um quadro, mas na verdade o que eu queria era a pintura, o desenho, o
traço, a vida de seus quadros, sua arte!! Desejei tê-lo como mestre, como
professor. Até consegui seu telefone, mas depois perdemos o contato e todas
essas memórias e desejos foram parar no meu reino perdido do Beleléo. Mas agora
eu estava ali em sua casa, diante do artista! É bem verdade que o homem parecia
um pouco cansado de carregar para lá e para cá, sem muitos cuidados, talvez
mais que meia dúzia de décadas. Em Jericó o sol parou por 24 horas. Para mim,
ele piscou. O sol da parede amarela piscou o olho e eu acordei.
– O senhor deve ser o Audifax.
– Eu sou o Audifax, mas não o senhor – sorrimos, nos
cumprimentamos com um abraço e ele me ofereceu um tamborete com o assento de couro
para eu sentar.
– Bom, eu, é... eu queria lhe dizer que para mim é um sonho
estar aqui com o senhor, quer dizer, com você. – Encabulado, ele sorriu
baixando a cabeça.
– Eu soube que era você, desde a hora em que o carro parou
ali na frente.
Começamos
a conversar como se já tivéssemos intimidade, tão grande era a identidade de
nossas idéias. Depois, foi logo me mostrando os rascunhos que tinha feito e
refeito.
– Já comecei e recomecei umas três vezes, mas não estou
convencido. Precisa ter uma continuidade, sabe? Mas assim que eu terminar a
publicação do meu último livro vou me dedicar ao teu e terminar sem parar.
De vez em quando, eu parava de ouvir
sua voz, que ia ficando cada vez mais distante e sentia como se estivesse
flutuando. Ainda não acreditava no que estava acontecendo. Em flashes eu
relembrava o encantamento da primeira vez em que vi suas pinturas. Relembrava
também o dia em que a história, que agora estava ali para ser ilustrada por
ele, me visitou e se escreveu no meu caderno. Agora já não sentia ansiedade, me
sentia anestesiada. Um dia eu sonhei em ter um quadro seu e agora estava ali
discutindo sobre sua ilustração para meu primeiro livro infantil. Só podia ser
sonho!
– Você aceita um café? – de novo acordei.
– Quero sim. Eu adoro café!
A
entrada era pela sala, onde se viam muralhas de livros espalhadas por toda
parte e nas paredes, quadros. Muitos. Tantos que as paredes pareciam colchas de
retalhos. E que belos retalhos. Com dois passos entrei na sala. Quis tirar as
sandálias, quis cobrir a cabeça, quis me ajoelhar. “Calma Aninha, é apenas uma
sala”. O corredor que dava na cozinha era todinho tatuado de gravuras e
pinturas. E na cozinha, mais livros e mais pinturas. Sua esposa nos serviu bolo
e café, água e conversa. Depois, voltamos para a varanda.
– Sabe que na hora que te vi eu já achei que a gente iria se
dá bem? Meu santo bateu com o teu. Vai ser ótimo fazer esse trabalho. Agora
sai!
Depois
de falarmos sobre a ilustração do meu texto, ele começou a me mostrar seus
livros e outros trabalhos de ilustração. Contou que estava um tempo sem pintar
quadros, mas que pretendia voltar o quanto antes. Tomei coragem e perguntei se
ele não toparia me ensinar a desenhar e pintar. Ele sorriu e me sugeriu que o
imitasse.
– Foi assim que eu aprendi. Imitando. Quando me dei conta,
tinha o meu estilo, o meu traço e as minhas cores. Esses livros aqui, eu
separei pra ti. Ah, e aquela editora lá, não é boa não. Vou te apresentar a um
amigo que está começando agora, mas é um cara decente e competente. Aquele outro,
eu andei me estressando com ele. Promete e não cumpre, o material nunca sai do
jeito que você espera, enfim. Aliás, como tu estás de tempo?
– Tenho o dia inteiro livre.
– Pois pronto. Tu esperas aqui que eu vou ligar para ver se
o Flávio pode nos atender. Espera aí.
Novamente,
me afundei nos meus pensamentos. Só subi, quando estava quase sem ar. Me sentia
tão grata e tão agraciada. Ao sairmos olhei novamente para o enorme sol e me
despedi com uma simpática piscadinha de olho. Hoje, algumas semanas depois,
recebi por e-mail as primeiras ilustrações do livro e diante do computador,
novamente experimentei aquela ansiedade, aquele encantamento do nosso primeiro
encontro. Dias atrás, depois de ter lançado o livro em São Paulo e de férias em
Fortaleza, voltei à sua casa numa visita de surpresa. Mas a surpresa maior foi
minha. A casa agora está vestida de azul e no lugar do sol há peixes nadando
pelas paredes.
Parabéns, Karenina! Para mim, não há nenhuma surpresa nesse seu jeito leve, sublime e envolvente de escrever. Muito lindo esse encontro! E já que a vida é a arte do encontro, que muitos como esse possam ser compartilhados! Um grande abraço!
ResponderExcluirLinda Crônica, parabéns Karenina !!!
ResponderExcluirKarê,
ResponderExcluirÈ uma crônica leve, assim como deve ter sido suave o encontro seu com o Audifax e sereno também é nosso professor azul, gílson Rampazzo, que se for lançar algum livro no futuro, certamente vai entrar em contato com o Audi, afinal de contas, a casa do Audi está vestida de azul...
Bj,
Mauzinho