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terça-feira, 8 de julho de 2014

Creme Nivea

            Em época de Copa do Mundo a gente fica, sempre que pode, longe do computador. Mas hoje, pra comemorar a semifinal mais uma Crônica de Balaio!           


            No dia seguinte ao aniversário da Dona Rosa, a casa da tia Tota estava cheia. Eu e minha mãe, três das Antoninas e a Ionele e o Lúcio. E o Lúcio é uma das muitas exceções àquela máxima que diz que mulher fala mais que homem. Até a Ionele, que fala pelos calcanhares, precisa pegar senha pra falar, quando ele está. Pois naquela manhã não foi diferente. Quando me levantei estavam todos ao redor da mesa. Umas já tinham desjejuado, outras estavam terminando e o Lúcio falando, contando, dizendo, explicando. Ai ele foi até o quarto tinha dormido e voltou com uma sacola. Cada vez que a mão saía da embalagem trazia consigo um pacotinho colorido brilhante.
            — Esse é um presente ótimo! – ele se elogiava – Barato e útil! E igual, que é pra ninguém brigar.
            Eu dei risada com a cena e apesar de ter sido a última a ganhar, fui a primeira a abrir a lembrancinha. Era uma lata azul de creme Nivea. Ligeiro como quem rouba, aquela lembrança me trouxe outras: férias de julho... viagem em família para Juazeiro do Norte... casa do Marcos. Mal chegamos e meu pai logo inventou um desculpa para sair de casa: fazer um mercantil para colaborar com nosso anfitrião. E fomos eu, painho e Marcos. A cidade era muito maior que Russas. Tantas lojas, tantas casas. Eram tantas as paisagens novas, que só percebi que não tinha mais unha pra roer quando doeu o dedo. Pois é, eu tinha voltado a roer unha e começava a sentir umas dores de cabeço inexplicáveis.
            Tinha hora que os dedos ficavam tão ressecados que era necessário umedecê-los, aqui que fosse com saliva. Minhas mãos, que já completavam 11 anos, tinham voltado a habitar mais minha boca do que o resto do mundo. Até acho que vem dessa época minha loucura por hidratante para as mãos. Mas a saliva engana. De cara, ela umedece, para logo em seguida ressecar. O alívio só vinha quando eu usava os cremes de minha mãe.
            Quando chegamos no supermercado, eu me separei do bando e fui passear sozinha entre as gôndolas. Sempre gostei da arrumação dos produtos nas prateleiras. Paro na sessão de higiene pessoal, hipnotizada pelo mar azul dos produtos Nivea. Mas fui capturada especialmente pelas latinhas de hidratante. Tão lindas e pequenas, tão adequadas ao bolso de uma menina com mãos ressecadas. A primeira reação àquele desejo foi pegar uma e abrir. Mas não tive coragem de usar. Foi exatamente nesse momento que me surpreendi com meu pensamento de que eu poderia pegar aquela latinha. Tive tanta vergonha, que senti minhas bochechas mornas.
            Fechei a latinha contra mim mesma e a devolvi para a prateleira. Até pensei que estivesse livre da tentação. O problema é que eu não consegui esboçar nenhum movimento que me tirasse dali. “Já sei! Vou pedir pro painho! Esquece. Ele não vai nunca comprar isso. Mas eu vou pedir e insistir tanto, que... Não vai adiantar nada. É melhor pegar logo.”
            Contra a vontade de metade de mim, procurei meu pai. Ele já se encaminhava para o caixa. Talvez se eu colocasse no carrinho sem eles ver, desse certo. Fiz.
            — O que é isso, Anninha? – não respondi, apenas mostrei – Não, disso nós não precisamos. Devolva lá vamos embora. “Como não precisamos? Eu preciso e muito! Que que eu te disse? Eu te disse, não disse? ”
            Caminhei desoladamente lenta até a prateleira, decidida a devolver a desgraça da lata. Com movimentos automáticos coloquei e tirei a lata da prateleira um sem número de vezes. “Ah, anda logo, bota isso no bolso! Ninguém tá vendo e ninguém vai saber. Mas... mas se o painho descobrir? E quem vai contar? Eeeeu que não vou.” Enfiei a latinha no bolso da bermuda e vi milhões de olhos nas prateleiras, no teto, no chão, em todo lugar. Os de Deus só apareceram depois.
            Quando cheguei ao caixa, meu pai já passava os últimos produtos. Passei por trás dele sem nem olhar para a moçado caixa. Vai que ela tinha a visão além do alcance?! Com a mão disfarçando o volume redondinho no bolso, entrei logo no carro e fiquei quieta. Mas só por fora. Porque por dentro eu sentia uma Amazônia de sentimentos: culpa, euforia, satisfação, orgulho, medo, tudo! À noite quando fomos dormir dei um jeito de ficar com a latinha nas mãos. Ali a empolgação já tinha passado e eu me corroía pela frustração de não poder contar pra ninguém, mostrar pra ninguém, compartilhar com ninguém! De que tinha adiantado? É, realmente o crime não compensa.
            — Vixe menina! Pra onde tu foi, heim?
            — Eita Lúcio, tão longe que tu nem imagina. Essa lata de Nivea me levou pra uma visita que fizemos a um primo, em Juazeiro. Lembra mãe?

            — Lembro sim. Aliás, lembro também que tu andava pra cima e pra baixo com uma latinha de Nivea. Quem foi que te deu?

2 comentários:

  1. de Zulmira: Parabéns Karenina, muito linda sua crônica. Até sorri.

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  2. Como é bom quando um texto seu faz outra pessoa sorrir! Obrigada por compartilhar isso comigo, Zulmira!! Um beijo.

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