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domingo, 10 de maio de 2015

O encontro

Esta crônica foi escrita em agosto de 2011 e mostra um pouco o meu encantamento com esta pessoa maravilhosa, de nome estranho e simplicidade tibetana. Infelizmente, há alguns dias eles nos deixou e foi pintar o além com suas cores fortes e traços de cabra da peste. Uma forma de declarar meu amor a esse ser humano de altíssimo quilate. Pra todos que, como eu, estão sentindo sua falta, meus sentimentos.



              Desci do carro e, do outro lado da rua, olhei a casa 197, logo em frente. Vestida de amarelo bem velho e muito cansado tinha portões de ferro, que tentavam bravamente parecer brancos. Seria ali mesmo? Aquela modéstia não condizia com minha imaginação bem adubada do que seria sua casoficina. Com apenas cinco passos atravesso a rua, desviando de poças d’água da chuvinha daquela madrugada. A cada passo a brisa vinda do mar recém amanhecido me acariciava. Nem assim aliviava a tensão. O muro baixinho e a grade de ferro me deixavam ver um homem grande sentado a uma mesa improvisada, rabiscando. Mesmo de longe dava para ver a pequena varanda da casa transformada em um arremedo de ateliê.  “Deve ser ele” – pensei. Estava bem no meio da rua quando senti vontade de dar meia volta volver, mas as pernas continuaram obedecendo ao comando de atravessar. Seguimos. Na noite anterior eu não tinha dormido direito, só ensaiando como me comportaria diante dele, o que diria, sobre o que falaria para não parecer idiota. Inútil. Além de dormir mal agora estava ali sem a menor condição de grandes elaborações.
                Nem bem pisei na calçada, ele percebeu que eu me aproximava e levantou-se devagar.  Procurou a chave do cadeado que mantinha a grade fechada, mas não achou. Entrou em casa, depois de acenar para que eu esperasse, enquanto eu dizia bom dia do jeito mais polido que consegui. Acho que ele nem ouviu. Foi aí que saiu com um chaveiro na mão, abotoando a camisa de estampa grande e colorida, já comentando que - a Flora, minha neta, sempre esconde a chave. Mas é sem querer, sabe? Eu ainda aguardava antes do primeiro portão, mesmo que esse estivesse entreaberto. Pela cara, ele só deveria ter sido fechado nos primeiros anos de sua juventude, o que parecia ter sido há muitos anos atrás. Contornei a parte fixa ao chão por um ferrolho e entrei. Do lado esquerdo, o murinho terminava na parede da casa vizinha onde estava pintada, bem grande, uma cara de sol e outros motivos do litoral sertanejo. Parei, reverentemente, e deixei que as figuras me olhassem. Como em Jericó, o sol parou.
                Anos atrás, eu tinha visto suas pinturas em uma livraria de Fortaleza e fiquei encantada, perplexa, extasiada, absolutamente tocada por suas formas tão nordestinas e suas cores. Ah... suas cores!! Desejei um quadro seu. Sim, desejei um quadro, mas na verdade o que eu queria era a pintura, o desenho, o traço, a vida de seus quadros, sua arte!! Desejei tê-lo como mestre, como professor. Até consegui seu telefone, mas depois perdemos o contato e todas essas memórias e desejos foram parar no meu reino perdido do Beleléo. Mas agora eu estava ali em sua casa, diante do artista! É bem verdade que o homem parecia um pouco cansado de carregar para lá e para cá, sem muitos cuidados, talvez mais que meia dúzia de décadas. Em Jericó o sol parou por 24 horas. Para mim, ele piscou. O sol da parede amarela piscou o olho e eu acordei.
– O senhor deve ser o Audifax.
– Eu sou o Audifax, mas não o senhor – sorrimos, nos cumprimentamos com um abraço e ele me ofereceu um tamborete com o assento de couro para eu sentar.
– Bom, eu, é... eu queria lhe dizer que para mim é um sonho estar aqui com o senhor, quer dizer, com você. – Encabulado, ele sorriu baixando a cabeça.
– Eu soube que era você, desde a hora em que o carro parou ali na frente.
                Começamos a conversar como se já tivéssemos intimidade, tão grande era a identidade de nossas idéias. Depois, foi logo me mostrando os rascunhos que tinha feito e refeito.
– Já comecei e recomecei umas três vezes, mas não estou convencido. Precisa ter uma continuidade, sabe? Mas assim que eu terminar a publicação do meu último livro vou me dedicar ao teu e terminar sem parar.
De vez em quando, eu parava de ouvir sua voz, que ia ficando cada vez mais distante e sentia como se estivesse flutuando. Ainda não acreditava no que estava acontecendo. Em flashes eu relembrava o encantamento da primeira vez em que vi suas pinturas. Relembrava também o dia em que a história, que agora estava ali para ser ilustrada por ele, me visitou e se escreveu no meu caderno. Agora já não sentia ansiedade, me sentia anestesiada. Um dia eu sonhei em ter um quadro seu e agora estava ali discutindo sobre sua ilustração para meu primeiro livro infantil. Só podia ser sonho!
– Você aceita um café? – de novo acordei.
– Quero sim. Eu adoro café!
                A entrada era pela sala, onde se viam muralhas de livros espalhadas por toda parte e nas paredes, quadros. Muitos. Tantos que as paredes pareciam colchas de retalhos. E que belos retalhos. Com dois passos entrei na sala. Quis tirar as sandálias, quis cobrir a cabeça, quis me ajoelhar. “Calma Aninha, é apenas uma sala”. O corredor que dava na cozinha era todinho tatuado de gravuras e pinturas. E na cozinha, mais livros e mais pinturas. Sua esposa nos serviu bolo e café, água e conversa. Depois, voltamos para a varanda.
– Sabe que na hora que te vi eu já achei que a gente iria se dá bem? Meu santo bateu com o teu. Vai ser ótimo fazer esse trabalho. Agora sai!
                Depois de falarmos sobre a ilustração do meu texto, ele começou a me mostrar seus livros e outros trabalhos de ilustração. Contou que estava um tempo sem pintar quadros, mas que pretendia voltar o quanto antes. Tomei coragem e perguntei se ele não toparia me ensinar a desenhar e pintar. Ele sorriu e me sugeriu que o imitasse.
– Foi assim que eu aprendi. Imitando. Quando me dei conta, tinha o meu estilo, o meu traço e as minhas cores. Esses livros aqui, eu separei pra ti. Ah, e aquela editora lá, não é boa não. Vou te apresentar a um amigo que está começando agora, mas é um cara decente e competente. Aquele outro, eu andei me estressando com ele. Promete e não cumpre, o material nunca sai do jeito que você espera, enfim. Aliás, como tu estás de tempo?
– Tenho o dia inteiro livre.
– Pois pronto. Tu esperas aqui que eu vou ligar para ver se o Flávio pode nos atender. Espera aí.
                Novamente, me afundei nos meus pensamentos. Só subi, quando estava quase sem ar. Me sentia tão grata e tão agraciada. Ao sairmos olhei novamente para o enorme sol e me despedi com uma simpática piscadinha de olho. Hoje, algumas semanas depois, recebi por e-mail as primeiras ilustrações do livro e diante do computador, novamente experimentei aquela ansiedade, aquele encantamento do nosso primeiro encontro. Dias atrás, depois de ter lançado o livro em São Paulo e de férias em Fortaleza, voltei à sua casa numa visita de surpresa. Mas a surpresa maior foi minha. A casa agora está vestida de azul e no lugar do sol há peixes nadando pelas paredes.

sábado, 7 de março de 2015

Caminho da anta

Pois é... finalmente, o 2015 chegou também ao Balaio!! Desejando que o seu 2015 continue iluminando e abrindo um novo tapi'i'rapé a cada dia. Boa leitura!

Faz tanto tempo eu li, em um dos textos do Rubem Alves, não me lembro exatamente em qual, que o único mecanismo de defesa da anta era correr para o seu velho e bom caminho. A proteção viria pelo fato de que em um dado trecho a passagem era apertada o suficiente para passar apenas a anta, deixando para trás o eventual predador que estivesse com as garras e presas encravadas em sua carne. Particularmente, do alto da minha sapiência de sapiens sapiens, eu não diria que esta é uma boa estratégia de sobrevivência. Mas considerando o fato de que essa espécie só está ameaçada de extinção por causa da caça pelos sapiens e do desmatamento, talvez a estratégia não seja, assim, de todo ruim.
Pois foi depois que me mudei, recentemente, que essa história voltou às lembranças. Dentro da casa nova senti exatamente o que deve sentir uma anta em reabilitação, que é deixada numa floresta estranha. Não havia caminhos conhecidos que me fizessem sentir familiaridade ou proteção. Voltar para aquela floresta, ao final do dia, implicava sempre negociações. A casa não me acolhia. Não tinha jeito. Na verdade, o espaço novo oferecia uma resistência danada à minha entrada. Eu desejava um caminhozinho que fosse. Mas não apareceu nenhuma anta salvadora para me ajudar. Isso só começou a mudar quando passei a receber na minha nova floresta as pessoas mais queridas: as escritoras das tardes alegres de terça-feira, as bruxas amáveis dos diálogos com as deusas, as Azevedas, os Martins a Eva. Elas foram amansando o espaço e ele, aos pouquinhos, cedia. Passava a ser familiar, se mostrava familiar. Quase sorria pra mim.
O mais engraçado, foi perceber que quando o espaço me acolheu eu fui lá e mexi nele de novo! Mudei uma mesa de lugar, reorganizei um dos quartos, mexi nas plantas, inutilizei armadores, planejei novos, pendurei outros quadros. Só que dessa vez, ele me aguentou. Nem reclamou nem nada. Parece que agora somos já parceiros. Ou como diz a Bel, meu anjo da guarda, finalmente, chegou. É como se todos os caminhos ali dentro já fossem meus, conhecidos ou não, trilhados ou não. Todos caminhos da Anna. Aliás, os índios Aikewára conhecem ainda outro caminho da anta, Tapi'i'rapé. No céu deles, há uma constelação, Anta do Norte, que surge ao anoitecer na segunda quinzena de setembro, no lado Leste e caminha pela Via Láctea. Para eles a Via Láctea é o caminho da anta, Tapi'i'rapé. E que caminho! Essa constelação indica uma estação de transição entre o frio e o calor para os índios do sul do Brasil e entre a seca e a chuva para os índios do norte do Brasil.

Um caminho da anta que não representa nem só o familiar, nem só a mesmice, e sim o movimento, a transição, a mudança. Talvez seja isso que faça a presença das pessoas amadas no novo espaço. Seus passos, seus corpos se deslocam fazendo o ar dançar, fazendo o espaço bailar numa dança de vida. Aí as pegadas ficam como pontos reluzentes e o chão vira um céu onde brilha um Tapi'i'rapé só meu, só nosso. Não leio mais Rubem Alves. Ele ficou um pouco repetitivo pra mim. Mas talvez todo autor fique repetitivo quando se dedica a defender uma ideia, uma hipótese. Talvez, até os grandes autores tenham o seu caminho da anta. 


domingo, 16 de novembro de 2014

Luz de verdade ou estrela de mentira?

 Para embalar o soninho do domingo e começar bem a semana, uma Cronicazinha de Balaio. Depois me diga: você conhece alguma Berenice assim? Boa leitura.



              — Alô. Oi Demerval, tudo bem? Tá certo. Mas eu ligo lá? Tá bom. Obrigada viu.
            Que bom, capaz que a Clara já leu os contos e quer me dizer o que achou. Será que ela gostou? Ai ai ai e criança fala mesmo, não tá nem aí pra paçoca. Aff! nunca pensei que fosse ficar tão ansiosa.
            — Oi Demerval, é o 34, não é? Liguei e ninguém atende. Ah, deve ser. Bom, vou esperar, então. Boa noite querido.
            Desliguei o interfone e fui me ocupar com as pequenas tarefas de quem acabava de chegar em casa, depois de passar boa parte do sábado lá na EACH. Só não conseguia parar de pensar no que teria achado a Clara, minha mais nova avaliadora de textos. Tomei banho, comi um sanduíche de queijo com uma deliciosa taça de vinho e me pus, preguiçosamente, em frente a televisão. A sensação era de dever cumprido e de euforia pela possibilidade de conversar sobre o novo conto com uma leitora de 10 anos. Conforme a taça era esvaziada, o dia de trabalho ia se apagando e o desejo de saber sobre o texto tomava novos contornos e novos tons. Mas nada do interfone tocar. O que tocou foi a campainha – será que ela? Mas a mãe deveria interfonar antes, nera? Hummm já não gostei dessa invasão.
            — Quem é?
         — Berenice! – quê?! Ah não, que que essa moça tá fazendo aqui? Você não vai convidar pra entrar, vai? Não eu não quero, mas... Mas nada! Anna Karenina. Você não a chamou, ela não avisou que vinha, nada de educaçãozinha proforma. Mas, mas, que merda! Eu quase não conheço ninguém nesse prédio. E vai continuar sem conhecer. Imagina se todo mundo aqui é assim?
            — Boa noite. Como vai?
          — Oi meu amor, tudo bem. Vim trazer uma comida, que eu não sei se você gosta, mas minha mãe faz tão bem que você vai adorar, tenho certeza – não recebe. Agradece e diz que não pode aceitar por causa.... por causa da tua religião! Fala que tu é judia! É isso. Tá louca? A moça vem aqui com toda gentileza e eu...
            — Ah muito obrigada.
            — Você não vai olhar o que é?
            — Ah, devo? Ééééé... achei que.... deixa pra lá.
           — É dobradinha, menina! Ouvi ontem você dizer que é do Ceará. Como certeza você adora. Vocês chamam de panelada, não é? Minha mãe também é cearense – eu te falei pra não aceitar. Só falta agora ela se convidar pra comer contigo. Vai ser lindo tu passando mal só porque não sabe dizer não. Coisa mais idiota. Não, ela não vai ser louca de fazer isso. Hã? Não duvido de nada.
            — Você gosta não gosta?
            — Na verdade não, quer dizer, não muito, mas sua mãe deve cozinhar muito bem.
         — Cozinha mesmo. Mas que linda sua casa. Nossa, ela parece bem maior que a minha! – tá vendo esse é o primeiro passo pra se convidar pra entrar. Fala logo que você tá ocupada. Sim, bem ocupada, com a televisão ligada e uma taça de vinho no braço do sofá. Ela vai sacar que é mentira. Anna Karenina, Anna Ka re ni na, a mentira foi feita para ser usada nessas ocasiões meu bem. Você ainda não aprendeu?
            — Ah... muito obrigada. Eu gostei de como ficou. É, pois é, eu tirei um dos quartos. Não, não conheço sua casa, não – se você não cortar essa conversa agora, ela vai cruzar a soleira e aí fodeu! Não arreda um milímetro!
            Eu segurava o depósito plástico, ainda bem quente, exalando o cheiro típico de panelada, sem me mover. Já a moça, coitada - quer dizer, coitada de mim - se esgueirava tentando se livrar da minha imagem e espiar a casa. Ainda bem que as luzes não estavam todas acesas, então não dava pra discernir muitos detalhes. Só que o calor da comida começava a incomodar e eu precisava colocar aquilo na bancada – não faça isso! Mas está me queimado! Uma queimadurinha de nada, não vai fazer mal nenhum. Como não? Aguenta, aguenta senão tu vai te arrepender. Inventa qualquer desculpe, mas fecha essa porta!
           — Outra hora você vai lá em casa. Ah e o Reinon gostou muito do livro que você deu pra ele. Ele adorou! Eu também.
            — Que bom... ele é seu filho... Fico contente. Pode deixar que outra hora eu passo lá sim.
            — Você colocou aquecedor ou chuveiro elétrico?
            — Ãh? Que? como assim? Ah... coloquei aquecedor.
            — A gente colocou chuveiro. Você tá gostando?
            — De quê? Ah claro, tô, tô sim – eu disse não disse? mas eu te disse, eu te disse – Ô Berenice, querida, muito obrigada pela visita, mas eu acabei de chegar do trabalho ainda tenho que fazer umas tarefas e não quero dormir tarde. Se você me dá licença eu vou indo, quer dizer, vou ficando – hummmm até que enfim aprendeu a mentir, heim! E não é que você mente bem, filhinha! Até eu tô achando que a gente vai ter que trabalhar ainda hoje! Hahahahaha.
            — Claro, claro. Outra hora eu volto. Mas essa flor é de verdade ou é de mentira?
            — É de verdade.
            — Posso ver?
            — Qual? ah... essa é de mentira.
            — Logo vi. Mas parece de verdade.
           — É né? Pois é Berenice... eu realmente queria entrar. Muito obrigada pela visita e pela panelada.
            — Depois você me diz o que achou.
            — Pode deixar. Boa noite.
            — Linda essa flor. Depois você me diz onde comprou? Vou querer uma igual!
           — Boa noite. Digo, digo sim. Vou procurar o cartão, porque agora eu não faço ideia de onde está. Tchau.
            — Tchau meu bem. Linda sua casa. Mas parece de verdade essa flor. Tem certeza que ...
            — Tenho. Absoluta. Boa noite.
          — Boa – meu deus, que mulher chata! Nunca menti tanto em tão pouco tempo. E ainda vou ter que dá um jeito nessa panelada, heim? Aff! Minha vontade era rebolar no mato com depósito e tudo! Ah não, experimenta! Experimenta você! Ai Anna Karenina, tem horas que tu é tão antipática! que eu nem sei como eu te aguento. Eu é que não sei como EU te aguento. Pois eu sei. Sem essa Anninha aqui, meu bem, você não teria escapado nem da diarreia do primeiro ano de vida. Engraçadinha! Diarreia é o que eu vou ter se comer isso aqui... não, não vai ser agora que eu vou gostar de panelada. Experimenta, experimenta! Como você é besta! Então pronto vamos fazer um brinde!
            Troquei o refil da taça e fui pra minivrandinha assistir o entardecer. No céu, já dava pra ver dois ou três pontinhos brilhantes. Seriam de verdade ou de mentira? Que importa? Algum deles até poderia já nem existir e sua luz ainda viajando. Seria uma luz de verdade ou uma estrela de mentira. Ainda prefiro uma luz de verdade, embora em algum momento se possa fazer uso de uma estrela de mentira. Mas com parcimônia, claro! – ah não, não é possível que seja essa moça de novo!
            — Alô. Oi Clara! Já? Não, não. Desocupadíssima. Quando? Perfeito. Tô indo aí agora!