Parecia que já nos conhecíamos.
Naquele domingo, eu tinha resolvido caminhar até o Parque da Água Branca para
tomar café da manhã no quiosque de comidinhas orgânicas. Ela ocupava uma das
mesas, onde se servia de uma xícara de café, pães, queijo e manteiga. Para um
domingo azul celeste, até que eram poucas as pessoas. Não foi de propósito, mas
quando tirei os olhos da minha xícara de café, encontrei seu olhar perdido na
minha direção. Foi aí que eu a vi. Do lado direito da xícara, ela rabiscava um
caderninho, com o que parecia ser uma lapiseira. Que cena bonita e carregada de
poesia. Sorri agradecida, ou meio sem jeito, quando seus olhos finalmente me
encontraram por sobre as lentes dos óculos. Mas ela não me viu.
Quando fui ao quiosque buscar a
segunda xícara de café, a moça que atendia e que me pareceu informal demais, me
perguntou se eu poderia fazer o favor de entregar uma bandeja antes de me
servir novamente. Achei aquilo um pequeno abuso, mas o dia estava para a maciez
do azul e a vivacidade do amarelo. Disse que sim. Ela falou apontando para a
mesa.
— Aquela de lenço florido no pescoço.
— Com licença, a moça pediu que
eu trouxesse o seu café. – ela me olhou sorrindo, mas não era para mim, disse
com a mão que eu colocasse a bandeja na mesa e voltou a escrever no seu
caderninho. De tão surpresa fiquei ali parada. Sem saber o que fazer, além de
botar a bandeja na mesa. Quando eu ia saindo para ir buscar a minha e me
recolher à minha insignificância, escutei um obrigada.
— Me desculpe o mau jeito. É que
se eu não prendesse essa ideia no papel ela fugia. Muito obrigada. Agora a
danadinha não voa mais!
— De nada – e continuei no
movimento que tinha iniciado caminhando o curto espaço até o quiosque. De volta
a minha mesa, era inevitável não olhar praquela mulher. De onde eu a conhecia?
— Você já tem filho? – foi o que
ela perguntou ao me pegar olhando para suas mãos. Fiquei encabulada e sem
graça, mas respondi mesmo assim.
— Não, não senhora.
— Venha sentar aqui. Vamos venha.
Você está com quantos anos? Venha, venha.
— Com licença – sentei tão sem
jeito, que não me reconhecia naquela timidez toda. Além de eu achar que a
conhecia, aquela senhora falava comigo com uma intimidade desconcertante.
— Me diga, você já tem filho?
Ah, que delícia esse café daqui, não?
— Não, não senhora. Quero dizer,
não tenho filhos.
— Pare de me chamar de senhora.
Coisa mais antiga. Já sei que é o costume. Pois arranje um melhor e ponha no lugar
desse – sorrimos. Ela passou a mão no meu rosto de um jeito delicado. Mas não
foi um carinho. Foi uma investigação.
—Tome cuidado com esse sinal, se
ele começar a crescer. Quantos anos você disse que tinha?
— Quarenta. Quer dizer, faço 41
em alguns dias. Que bonita sua bengala! Posso ver?
— Ver com as mãos, você quer
dizer, né? Comprei numa viagem que fiz pra África do Sul. Faz uns 2 anos que
ela me acompanha. Comigo foi bem como no enigma da esfinge. Sabe?
— Ah, sei sim! – enquanto eu
examinava aquela bengala, ficava só imaginando como seria a vida daquela
senhora.
— Vamos, pode começar a
perguntar – “nossa, parece que ela é bruxa”, pensei.
— A senhora, quer dizer, você
costuma vir a este parque?
— Não muito mais. Mas hoje eu
queria tomar este café. Como elas fazem umas comidinhas gostosas, não? E agora,
ainda por cima tem tapioca! Antes não tinha mandioca orgânica!
— Ah, e a senho... você gosta de
tapioca? – fez que sim com a cabeça, enquanto bebia mais um gole de café.
— E você, como a vida tem lhe
tratado? Já se arranjou com alguém? Faz tempo que você mora aqui? Pois não
perdeu o sotaque. E se não perdeu até agora, minha filha, não perde mais. – foi
minha vez de responder balançando a cabeça – Ah! Me ajude aqui. Estou
escrevendo uma história pra meus bisnetos. Eles vão completar 4 aninhos. Um casal.
Eles adoram histórias. Adoram livros. Pensei em escrever uma história e
ilustrar com eles, que acha?
— Muito legal! Eu tenho pensado
em fazer isso com meus sobrinhos, sabia? Que engraçado!
— Pois pare de só pensar e trate
de agir, que o tempo não espera por ninguém! Mas não encontro um conflito bom
pra essa história, menina. Estou às voltas com ela já faz uma semana e não desarna
– nem tive tempo de encontrar o que eu estranhava naquilo tudo – E você? Como
vão as aulas? Você é professora, não é?
— Sou mas... Tá tão estampado
assim?
— Pra minha visão de velha, tá.
Além do mais essa história de escrever livro com sobrinho, só pode ser coisa de
professora.
— E a senho... você escreveu
outras histórias?
— Sim, andei escrevendo umas
historinhas que viraram livros. Isso me renova. E você, o que faz além do
trabalho?
— Ah... eu também gosto de
escrever. Participo de uma oficina de escrita literária e no momento to
escrevendo crônicas. E a maioria delas são memórias de infância. Mas
ultimamente eu tenho escrito uns contos curtinhos também. Mas eu queria mesmo
era aprender a desenhar para ilustrar meus contos. A sen... você ilustra
também?
— Já ilustrei alguns, mas depois
enjoei. Agora eu acho muito mais divertido me surpreender com o que outra
pessoa faz com a minha história. É como se ela escrevesse de outro jeito, sabe?
Enquanto ela bebida mais um gole
de café, eu fiquei absorta no que ela tinha acabado de dizer. Fazia sentido
aquilo. Talvez eu pudesse aprender a desenhar, mas não necessariamente para
ilustrar minhas histórias.................................................................
Mas ainda não era isso o que me agoniava naquele encontro. No fundo, no fundo
eu me via nela. Não fossem as marcar do tempo eu até diria que éramos
parecidas, sabe? Seu olhar me perscrutava de um modo tal que eu me via nua. E
embora houvesse curiosidade no olhar, dava pra perceber que ele sempre se
acalmava e aquele corpo tranquilo, mas agitado nas ideias, encontrava um lugar
apaziguador. Familiar, talvez. Com certeza nos conhecíamos de algum lugar.
Claro que nos conhecíamos! Era isso. Mas de onde?
— E seus bisnetos? Como se
chamam? Quantos anos eles têm? – mexeu no lenço colorido, tirou os óculos e
passou os dedos nas sobrancelhas como se as penteasse.
— Eles vão fazer 4 anos e se
chamam Clara e Antônio. São danados, menina!
— Ah, mas toda criança sadia é
um tanto danada, né? – sorriu concordando – A sen... você mora por aqui?
— Não. Já morei há muitos anos e
por muitos anos. Agora vim só passar uns dias com minha neta. E você mora onde?
— Na Pompéia. Mas estou quase
mudando pra mais perto do trabalho.
— O lugar é seu?
— Esse de agora, não. Mas acabei
comprando um apartamento lá pra zona leste, que é a região onde eu trabalho.
— Depois você vai ver que foi
uma boa compra. Uma velha amiga dizia que ter um lugar pra jogar um colchão e
não ter a preocupação de ser despeja é muito importante na vida.
— É... eu tenho, quer dizer,
tinha uma velha amiga que dizia exatamente isso. Ela morreu semana passada. Se
chamava Marilene. Ela foi muito importante pra mim. Não sei se a senhora entende,
mas às vezes a gente é, só porque alguém disse que seríamos capazes de ser. Ela
disse que eu seria capaz de muito do que eu sou hoje. Até me dá uma tristeza...
saudade dela... – passou a mão no meu rosto e dessa vez era mesmo um carinho.
Absorveu a lágrima no seu dedo enrugado e voltou a se agitar por dentro.
— Você disse que vai fazer
aniversário daqui uns dias, não é? – balancei a cabeça sorrindo amarelo – Pois
pronto. Vamos fazer o seu presente de aniversário! – virou a página do
caderninho e começou a escrever: Presente de aniversário para a ...
— Como é mesmo seu nome?
— Anna Karenina. Anna com
dois... Como a senhora sabia?
— Eu não sabia – disse com o
sorriso mais arteiro que podia se formar naquele rosto que já deveria ter
sorrido todos os sorrisos e chorado todos os choros – Vai menina, comece a
dizer os desejos. Olhe que escrita de velha realiza, heim! Diga, vá. O que você
quer? Mas não me venha com essas besteiras vagas de quero ser feliz, porque
felicidade é uma invenção. Me diga exatamente o que você quer.
— Tudo?
— Tu do! Concreto.
— Ah... nossa que difícil isso.
Mas... eu posso ter dúvida sobre o que quero e aí o universo decide por mim? –
ela deu uma gargalhada contagiante e enquanto ria balançava a cabeça
positivamente – tá, então... eu quero ser mãe, quero plantar café orgânico, quero
um amor pra compartilhar os planos, quero... quero... – enquanto eu falava,
parecia que sua mão era mais ligeira que minhas ideias. Prestando bem atenção,
na verdade, ela começava a frase antes mesmo que eu falasse. Era
desconcertante. Eu tinha dúvida do que eu queria, ela não. E embora ela tenha
se dado conta de que eu estava pasma com aquilo, sacudiu a mão num deixa pra
lá, deu um estalo com a boca e disse:
— Transmimento de pensação, boba.
Transmimento de pensação.
Depois que ela escreveu tudinho
na folha, pediu que eu lesse como quem faz uma prece. Inacreditável, até nossas
letras eram parecidas! Li com dificuldade porque o papel cismava em se mexer.
Arrancou a folha cuidadosamente e pediu que eu buscasse um fósforo.
— Vamos queimar que é pra chegar
bem longe no universo. Mas você tem que acreditar do mesmo jeito que era com
sua amiga lá, a Marilene.
Queimamos a folha no chão e
depois ela bateu o pé bem perto fazendo as cinzas voarem, ainda que baixinho.
— Pronto. Agora vá que deve
estar na sua hora. Não fique perdendo seu tempo com uma velha, nesse domingo
azul e macio – agitou-se inesperadamente na cadeira – Que boa ideia! Acabo de
ser visitada por um conflito ótimo para história! O que você acha de um
presente desejado, mas não ganhado? O conflito é bom, mas tenho a impressão de
já ter escrito sobre isso. Bom, não importa. Venha, me dê um abraço.
Me despedi com um abraço delicado,
sem a força de costume, beijei suas mãos e sorrindo fiz as últimas cinzas
voarem. Automaticamente peguei minha sacola de pano e saí. Não estava na minha
hora, não tinha nada pra fazer depois, não iria encontrar ninguém. Apenas
obedeci sem questionar nada. Caminhei pelo parque com uma cara de abestada
rindo pras árvores. Só quando estava quase na saída é que me lembrei de que não
tinha perguntado seu nome. Como não? Eu sempre pergunto os nomes! Voltei
correndo para o quiosque, mas ela já não estava lá. Ainda perguntei à moça que
nos atendeu, mas ela disse que era nova ali e que nunca tinha atendido aquela
senhora antes. Bom, vai ver que não era para eu saber aquele nome. Afinal, o
encontro já tinha sido mesmo um presente. O que mais eu poderia querer?
Lindo, terno e delicado Anna...Quem sabe o nome dela era Anna Karenina...não é?
ResponderExcluirbeijos grandes e que você conquiste tudo o que quiser
bel
Que os anjos digam amém ao seu amém!!! Obrigada querida pela visita, pelo comentário, pela força!
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