Olá, queridas e queridos visitantes. O texto que posto hoje foi escrito ano passado, por ocasião do aniversário do professor das oficinas de Escrita Literária do Museu Lasar Segal, Gilson Rampazzo, e modificado essa semana. É uma crônica sobre como os encontros nos transformam profundamente e como essas mudanças se manifestam nas mais inesperadas dimensões. Mais uma Crônica de Balaio. Esta, dedico especialmente a meus colegas do Lasar Segal, ao meu amado professor Gilson e a minha querida Jaqueline.
Isso foi em dezembro de 2010. A mensagem com o título TCC
começava assim:
_ Bom dia professora. Meu nome é Jaqueline, fui sua aluna na
disciplina de Fundamentos Biológicos e gostaria de saber se você pode me
orientar no trabalho de conclusão de curso. Tenho interesse em nutrição e
pensei em estudar algum tema relacionado a qualidade de vida.
Desde
que entrei na EACH, minhas angústias com a ciência e a pesquisa se agravaram. Pensei
que quando terminasse a pós-graduação isso tivesse fim. Estava bem enganada.
Demorou até que eu percebesse que, se a vida é essa gangorra, uma linha de
pesquisa também seria. Agora entendo que então nunca sentirei paz enquanto meu
coração bater. Os alemães é que já sabiam disso. Eles chamam cemitério de “Friedhof”,
lugar de paz. Olha aí! Pois é. Mas digamos que as angústias agora eram outras.
Eu poderia pesquisar o que eu quisesse e bem entendesse. Não ter alternativas é
barra, mas ter todas é um pouco demais. Na verdade é mentira que eu tinha todas
as alternativas. Em ciência, a gente também tem família e sobrenome e para
mudar não é fácil, não. É tão difícil quanto escrever o primeiro poema fora de
uma lógica discursiva. Como fazer? Esses são casos de alternativa única:
fazendo.
Aquela era a amanhã do dia 10 de
março de 2009. Uma terça-feira. Introdução à Escrita Literária. Eu tinha me
matriculado em uma das oficinas do Museu Lasar Segal para aprender a escrever
contos para crianças. Contos. Nem bem começa a aula e de cara a decepção. Conto
coisa nenhuma. Poema.
_ Vamos começar pelo poema porque está na dimensão mais
simples de organização da língua: a palavra.
Nos minutos que se seguiram à
fala, que dizia mais ou menos isso, eu desisti do curso, me indignei porque o
site não dizia isso, fiz cara feia, desisti novamente e me acalmei à medida em
que percebia que aquele homem, sentado à minha frente, de pernas cruzadas,
fumando um cigarro, tinha um domínio extraordinário daquilo que falava. E isso
me ganha. Foi tarde e manhã da primeira aula. Eu saí absolutamente encantada e
convencida de que se devia aprender a escrever começando pelo poema. Claro!
Qual a dúvida? Nem por isso o que veio depois, foi fácil. Nada fácil. O que se viu
ao longo do semestre foram batalhas internas, que travávamos no silêncio
abarulhado de nossas almas, cada vez que tínhamos que escrever um poema,
morrendo de medo que fosse discursivo. O mais interessante era perceber que o
poema era mesmo discursivo, mas só depois de lê-lo para a turma. Por que não
perceber antes? Por quê?
_ E como a gente faz isso professor? _ Dizia um herói
desavisado.
_ O problema de vocês, não está na linguagem, está em vocês.
Em olhar para o mundo sempre do mesmo jeito, sempre com a mesma lógica. Para
não escrever um poema discursivo é preciso mudar o jeito de pensar. “Ôxi, mas
isso aqui é um curso de escrita literária ou uma consulta ao oráculo de Delfos?”
Este é um caso onde todas as
alternativas estão corretas. E certamente eu só tinha ficado porque estar ali
me trazia muito mais do que técnicas e dicas. Eu estava ali por mim, pelo
professor e pelos colegas. Era isso mesmo. Depois de um semestre de poema na
veia, fomos convidados a entrar pela porta de casa sem conflitos, nem repetição
de ritmo. E antes que alguém pergunte como fazer isso, adianto que este é outro
caso de alternativa única: fazendo. Batendo com a cara na porta, mesmo.
Detalhe: nós mortais demais para sermos poetas, agora estávamos ali diante de
uma turma de EXPERTS! Ãhã. A galera escreve desde sabe-se lá quando e nós recém
alfabetizados, sequer conseguíamos entrar na própria casa! Faça-me o favor! Mas
o lindo foi que quando finalmente abri minha porta, todos entraram comigo.
Até
ali, muitos haviam desistido no caminho. Uns talvez por se acharem tão bons que
não mereciam críticas. Outros por não se acharem suficientemente competentes
para promover em si a mudança de paradigma. Paradigma sim. Se as revoluções
científicas acontecem nesses momentos de abandono de paradigmas, o que
acontecia em mim era tão profundo e marcante, que certamente eu abandonava um
modo de pensar, olhar, ser, para encontrar outras possibilidades. Fora dali,
inclusive. Uma vez dentro de casa, você pode começar a escrever crônicas. A
regra? Ser você mesmo. Aí a tarefa é dupla: descobrir quem você é para ser você
mesmo. Começam a aparecer os erros que concepção, condução, desenvolvimento. As
críticas e os elogios sinceros me davam a segurança para querer estar ali toda
semana me expondo e assistindo a exposição de minhas colegas mortais, mas
também daqueles semi-deuses.
Não fiz
idéia de quão profundas foram as mudanças que tomaram espaço dentro de mim, até
semana passada. Na terça, preparamos uma homenagem azul. Jorraram palavras talhadas
com muito amor e esforço na forma de textos lindos, lidos com muita história. Com
uma cumplicidade bem forte! Sim, estamos todos dispostos a entrar por quantas
portas forem necessárias e apresentar críticas e elogios sinceros quando o
colega estiver tentando ser ele mesmo. A cumplicidade é tamanha, que haverá
vezes em que alguém pedirá os olhos do outro para ler a si mesmo. A Neila é
craque nisso. Foi tarde e manhã de mais uma terça-feira.
Aí, na quinta-feira seguinte,
aconteceu a apresentação do TCC da Jaqueline, pouco mais de um ano depois
daquela mensagem. Os comentários, tanto os críticos, quanto os elogiosos, dos
dois colegas da banca me ajudavam a perceber que o trabalho que tínhamos feito
era realmente bom, embora fugisse completamente da minha herança científica. Eu
estava emocionada e grata. Grata ao Leandro e ao Cris por nos ajudarem em tudo
nesse trabalho. Grata à Jaqueline pela coragem de me aceitar como orientadora,
sendo eu tão iniciante, naquela ciência, quanto ela. Grata ao meu Professor
Azul que enquanto me convidava a pensar novas possibilidades para escrever um
poema ou um texto bacana, me ajudava a abrir novos caminhos em meio às crises
com a ciência e a academia. Grata aos meus colegas, que uma vez tendo entrado
pela minha porta, nunca sairão de minha casa. E se já me fosse permitido
conversar com meus leitores, eu diria: amo você querido Professor Azul, amo
você Jaqueline, amo vocês colegas coloridos. Saibam que o que compartilho com vocês é muito mais
que um Curso de Escrita Literária ou uma orientação de TCC, é vida.
Simplesmente fantástico Karê. Aliás, todo o balaio está muito bom! Unir situações diferentes e colocá-las tão perto para retirar uma lição... É só para os bons!!! O artista e o cientista tem em comum o fato de que todas as suas grandes obras e invenções são fruto das suas tentativas de encontrar uma saída/um alívio para a sua própria crise.Te admiro demais. Saudades,
ResponderExcluirVero.
Meu amor, você não imagina como esse comentário me motiva a escrever textos que falem cada vez mais do que tenho vivido. Amo você. Não se afaste, me dê sempre notícias!
ExcluirEmocionante, Karê!
ResponderExcluirEstou no Segall há quase quinze anos e antes de ler uma crônica sempre me dá aquele friozinho na barriga. Isto me fez lembrar de um show do Zé Ramalho que tive a oportunidade de assistir numa cidadezinha do interior paulista chamada Pereiras. Antes de começar o show eu estava atrás do palco e na hora que o Zé subiu, parecia que estava começando a sua carreira, que era sua primeira apresentação, ele fazia uma porção de movimentos corporais para relaxar. É muita responsabilidade, é muita sensibilidade! E sensível foi este lindo texto. Parabéns! Se tivesse que criticar o seu texto, você sabe que eu criticaria, mas a qualidade literária não me dá motivos para isto.
Mauzinho