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quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Escrever com luz



         Fotografia é uma das minhas paixões reprimidas. Se bem que não tanto ultimamente. Esta história conta o dia em que conheci o Marcílio. Uma figura. E você, gosta de fotografar? Conheceu algum Marcílio? Bom feriado e lindas imagens!
 

— Boa noite, boa noite! Ora, ora, ora vejam o que temos aqui. Como você se chama minha flor de laranjeira?
“Meu deus, que caritcha é esse? Camisa de elanca em pleno século 21, penteadinho ultrapassado e minha flor de laranjeira? Francamente...”
— Olá, como vai? Meu nome é Anna Karenina.
— Uau!! Uma rainha russa temos hoje para o jantar! Marcílio Flores de Carvalho, seu criado.
“Não, ele não pode ser o Marcílio! A Josi não faria isso comigo.”
— Estou enganado ou é você que queria umas aulas de fotografia com este cravo aqui?
“Cravo? Ele deve mesmo se achar o máximo!”
— É, bem... na verdade eu...
— Não, não diga nada, pelo seu olhar já sei que é. Eu tenho um sexto sentido com os desejos da mulheres, sabe?
“Minha nossa senhorinha, que pé no ovário é esse rapaz!”
— A Josi me falou de uma amiga que gosta muito de fotografia e que estava a fim de aprender a técnica etc e tal. Olhe mocinha, ninguém melhor que eu. Digamos que eu seja um Carvalho na exigência e Flores na paciência. Demais, não? Vamos escrever lindas imagens com luz. Sacou? Escrever com luz, foto grafar? Vem do grego. Esses caras eram foda mesmo, não acha? Hoje eles estão mal das pernas, mas eu jamais negaria a importância deles para a cultura ocidental. Eu e o meu senso de justiça. Mas me diga, qual o modelo da sua máquina? Olha, minha disponibilidade é apenas aos sábados à tarde, heim? Não vá me inventar outro horário! Mas, para uma rainha russa eu posso abrir exceções.
         Entediada, bebi o último gole da minha caipirinha e retruquei enfezada.
— Não, Anna Karenina era apenas uma personagem de um romance russo.
— Ah, dá no mesmo, tudo é ilustre.
Sorri sem graça tentando esconder um pequeno desespero com cheiro de irritação, raiva da Josi e falta de ar. Como meu copo estava vazio, saí não tão de fininho, deixando claro que pegaria uma bebida. Nem passou pela minha cabeça perguntar a ele se queria uma. Pisando duro, atravessei a sala na direção da cozinha, onde Josi finalizava os preparativos do jantar.
— Está se divertindo, querida?
— Está tudo uma delícia. Você se preocupa com os detalhes dos detalhes e isso faz toda a diferença em tudo. Mas, amiga, quem é mesmo o cara que você falou que é fotógrafo e que iria me dar umas aulas?
— Ah, olha ele ali. É o Marcílio. Vou te apresentar a ele.
— Não precisa, ele já se apresentou. E eu preciso te dizer que sua idéia dele me dar aulas foi péssima! O que você quer? Que eu passe a odiar fotografia?
— Ai Kare, deixa de ser exagerada.
— Exagerada? Eu não fui com a cara dele, com a fala dele, com as idéias dele, nem com a camisa dele! Só achei bacana o escrever com luz.
— Hãm?
— Não, nada. Olha só, você vai já desfazer o convite. Prefiro morrer na ignorância a aprender o que for com um sujeitinho boçal como esse.
— Ah, gata, sinto te informar que já diagnosticaram a morte cerebral de Inês. Não há mais nada o que fazer. Eu e o Cláudio pagamos a ele dois meses de aula e vamos te dar de presente de aniversário.
— Presente de aniversário? – Tomei um gole da nova caipirinha, essa de frutas vermelhas, de certo para combinar com o Flores. Que ódio! Eu ia ter que aturar esse mala, não tinha jeito.
— Sim, amada, você não vai nos fazer essa desfeita, vai? Além do mais, o cara está na maior pindaíba, sem arrumar trabalho, corneado pela noiva e acabou de sair de um tratamento de câncer de pele. Está bom para você meu bem?
— E o que eu tenho a ver com isso?
— Você, nada. Mas o Cláudio, não sei por que cargas d’água, é alucinado pelo Marcílio. Eles são amigos desde a infância e um morre pelo outro se for preciso. Como você comentou com a gente que queria aprender esses lances de fotografia, o Cláudio, imediatamente, resolveu os dois problemas.
— Como assim, resolveu? Na verdade, ele criou problemas!!
— Josi, amor, olha quem chegou!
         Ela escapuliu da cozinha me deixando espumando de raiva. Passei parte da noite mal-humorada com aquela história. Com meu olhar desintegrador eu tentava inutilmente transformar o Cláudio em poeira estelar e o Marcílio em uma hipótese. Ruim, ainda por cima. Não consegui.  “Veja pelo lado bom, Anninha, você adorou a história de escrever com luz, não foi? De onde saiu isso, pode sair outras ideias legais. Hum...” Suspirei o mais profundamente que consegui e de longe levantei um brinde em comemoração à defesa de doutorado do Cláudio. A noite era de felicidade. De toda a chatice da conversa inicial, o que não saia da minha cabeça era o escrever com luz. Aquilo era simplesmente fantástico!
         A festa prosseguiu animada. Relaxei. Fazer o quê? Apesar disso evitei o Marcílio o tempo todo. Era melhor não criar anticorpos. Antes de sair, ele veio falar comigo.
— E aí, gracinha? A que horas do sábado à tarde teremos nosso primeiro encontro?
— Só posso terça às 10h
— Fechado! Nos vemos, minha rainha russa.
         Rosnei. Mas no final da rosnada terminei achando engraçado. O que?, eu não sabia. No primeiro encontro já experimentei a surpresa. Sabe aquela propaganda que pergunta: pode ser? e a alternativa é sempre melhor? Pois é. Foi exatamente isso o que aconteceu. O Marcílio, mesmo chato, é capaz de encantar qualquer pessoa pela fotografia e eu não precisava muito. Ele não só demonstrou um amor incandescente por esta arte, como um conhecimento impressionante. Aí, o danado me ganhou. Agora sempre que escrevo uma imagem com luz, me lembro dele e agradeço. Ao Carvalho pela exigência e ao Flores pela paciência.

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