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terça-feira, 21 de agosto de 2012

Sapatos velhos


Desde ontem venho sentindo uma alegriazinha fácil e barata. Como assim? Ora, uma alegria de morar onde moro, de ter o que tenho, de gratidão com minha orquídea só porque ela vai florescer. Acordei apaixonada pelo meu lençol, achando que ele era tudo o que eu precisava para ser feliz. Tenho andado tão exigente com a vida e comigo, que muito me surpreendi com aquela simplicidade minimalista. Demais até! E aquela felicidade comum não veio sozinha, estava acompanhada de um retorno a mim mesma, àquela Karenina que morou no Crusp, estudou Nutrição na UECE, uma Anna Karenina simples e leve que há muito eu não via. Parecia que eu tinha mudado, mudado e mudado e deixado um pouco de ser eu. Talvez tenha mesmo. Quer dizer, talvez eu tenha mudado muito mesmo, mas deixado de ser eu? Sei lá.
  Hoje o pilates foi mais legal do que de costume. A carga maior nos exercícios, que frequentemente me irrita, me fez sentir superando limites! Olha só. Voltei para casa e depois de um banho delicioso escolhi uma calça que adoro, mas que fazia anos que eu não usava. Os sapatos também. Confortabilíssimos. Chega meus pés sorriram quando entram neles. Saí de casa me sentindo linda, uma perfeita filha de Oxum com aquela calça amarela! Já nos primeiros passos, percebi o quão velhos estavam meus sapatos, mas nada desviava a atenção daquele conforto e mais uma vez fui feliz de uma felicidade simples e barata. Novamente tive a sensação de me aproximar de mim mesma e de me amar por ser eu quem sou. Bem, mas embora seja eu quem eu sou, seria a mesma? Meus sapatos, sem dúvida que não. O pé esquerdo estava mais frouxo do que de costume. Será que pé emagrece? Deve ser o pilates.
Nesses dias de sol, interno e externo, me deleito ainda mais andando de moto. Quando cheguei na EACH me sentia invencível.  Desci da moto e senti o pé esquerdo ainda mais frouxo. Tirei o capacete, arrumei as tralhas de motoqueira e resolvi olhar para o pé e entender melhor porque ele parecia tão mais confortável. Ao olhar o sapato assim de cima, não vi nenhuma diferença. Mas ao virar o pé para dentro percebi que quase metade da lateral estava praticamente solta. Não, não era descosturado, não. Era desmanchado mesmo. O material do solado havia se desmanchado, literalmente. Olhei embaixo do sapato e o que vi foi outra tragédia da mesma família. O solado estava partido no calcanhar e cheio de furos. “Meu Deus! Mas ele era tão bom, tão gostoso... e tão velho, não é querida!” Tentei pensar numa saída caso eles me deixassem realmente na mão. “Logo hoje que terei duas reuniões e uma tarde inteira de aula, caminhando de lá para cá da lousa! Me dei mal!” 
  A expressão pisar em ovos nunca se aplicou tão bem a mim. Era isso mesmo, eu caminhava com tanta leveza, com tanto cuidado, mas tanto, tanto, que nem ovos eu quebraria. Cheguei na minha sala e fui logo mostrando a marmota ao pessoal. Tire sarro de você mesmo e roubará dos outros essa oportunidade! Ninguém deu muita bola. A Viviane até disse que não dava para ver, caso eu não saísse por aí mostrando a Deus e ao mundo. Graças a Deus! Mas e a aula? Ai, ai, ai... e aluno é aquilo que a gente já sabe! Não importa a idade, eles estão sempre de olho nos mínimos detalhes dos professores. Eles poderiam até não me dizer nada, mas seria o comentário da semana.
- Hei, você viu que o sapato da professora vai deixando um rastro por onde ela passa?
- Nossa! É mesmo! Olha, tá ficando um pozinho preto pela sala toda!
  Que inferno! Mas fazer o que? Eu não podia simplesmente não dar aula. Alegando o quê? Se eu estava na Escola, todo mundo já tinha me visto, não dava para inventar nada! O jeito seria encarar aquela situaçãozinha ridícula. Todos os movimentos daquele dia foram milimetricamente avaliados, pensados, pesados. Chegou a hora e eu estava ali diante da sala de aula. Ainda pensava, a cada passo, que poderia fazer a aula sentada, ou de pé pertinho da mesa, sem sair do lugar. Será que eu conseguiria? E a compreensão da galera, seria boa? E se eles me pedissem: ah, professora desenha um esquema? Comecei. Entreguei para Deus e iniciei a aula como sempre.
  Passados alguns minutos, percebi que de vez em quando me esquecia da desgraça. Levava um susto interno e pensava, isso pode ser perigoso. Inútil. Os esquecimentos passaram a ser mais frequentes e as peripécias também. Numa dessas, encostei o bendito pé esquerdo no pé da cadeira de rodinhas que estava do lado da mesa. Sutilmente me dei conta do risco, mas estava tão empolgada...
— E o transporte da glicose se dá junto com o Na+, que entra a favor do seu gradiente de concentração. Ficou claro?
Bem feito! Quem mandou fazer de conta? No “aro”, senti um chão frio debaixo do meu pé. Quando vi, alguns alunos olhavam para a sola do sapato presa embaixo do pé da cadeira e outros para meu pé no chão, apenas coberto com aquela parte de cima do sapato. Olhei para meu pé, olhei para o solado que tinha ficado a 40 cm dali, pensei: bem que o chão poderia abrir agora e eu glamorosa como Koré seria tragada pelas profundezas da terra do andar de baixo e me transformaria em Perséfone. Pisquei os olhos e nada aconteceu. Os alunos não sabiam o que dizer e ainda estavam paralisados em suas cadeiras. Alguns desavisados, que não estavam prestando atenção na absorção da glicose, também não entenderam a surpresa dos outros. Agora sim, todos em sintonia me olhavam e eu... filho da mãe, esse Hades! Nunca aparece quando a gente mais precisa dele!
  Um aluno super atencioso e prestativo tentou me avisar que a sola do meu sapato tinha ficado para trás. Como se eu não tivesse notado. Deve ter fica nervoso, pobrezinho. Fiz que sim com a cabeça. Minha fisionomia permanecia perplexa, enquanto eu criava planos mirabolantes para escapar daquela situação. Até pensei em ser eu mesma absorvida no lugar da glicose! Que salvação! Inspirei. Dei de ombros e me virei para a lousa que comecei a apagar freneticamente. Parei. Senti-me tão ridícula que não resisti. Comecei a rir. Virei-me para a turma, ainda um pouco extasiada, e me acabei de rir. Aos poucos eles também começaram a rir. Cada vez mais alto. Não aguentei, tive que me sentar na maldita cadeira tragadora de solados .
— Professora, seu sapato está precisando de um gerontólogo, hein! Gritou um engraçadinho lá de traz. Voltamos a dar risadas compulsivamente. Depois que já tínhamos chorado de rir começávamos a nos acalmar. O jeito foi comentar sobre o acontecido.
— Bom, gente, é nisso que dá você acordar querendo se reencontrar nos objetos do passado. Não rola. Por mais que seu pé não cresça, o sapato envelhece e pode não servir. Não insista, desapegue-se!
Eles não entenderam nada. Rimos um pouco mais até que uma aluna ofereceu sua chuteira 37, eu calço 35, para que eu terminasse o dia. Sem ligar para o modelito, aceitei na hora. E assim foi que terminei um dia que começou lindo com meu retorno a mim mesma, percebendo que há objetos e Kareninas que não me cabem mais, já cumpriram suas missões e agora já não são. Sou outra, com outros tamanhos, outras roupas, outros pés, outros caminhos.

2 comentários:

  1. Amei! Ri muito.... Rsrsrs... Essas faxinas internas e externas são essenciais. Praticar o desapego é uma arte...

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  2. Oi Julie!!! Que bom saber que você passou por aqui. E você tem feito faxinas? Um beijo.

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