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domingo, 8 de abril de 2012

A Azeveda bailarina



            Esta semana, inspirada talvez pela convivência da Páscoa, que passei em Juazeiro do Norte, na casa da Fabyola e do Vange, quero postar um texto que bem poderia ser mais um da série Família é mesmo sensacional. Pois é, como não há essa sessão no Balaio, temos aqui mais uma Crônica de família para o Balaio. Iniciei, há uns meses trás, uma jornada em busca das histórias dos AzevedoBonfimTeixeiraRodrigues. Acho que essas crônicas, de algum modo, vão sendo histórias catadas, inventadas, sonhadas ao longo dessa viagem, que me ajudam a elaborar e organizar as ideias. Além do mais, cada vez que paro e escrevo sobre as pessoas dessa família, sinto um carinho e uma calma na alma. É isso. Uma calma. Também espero que, de alguma forma essas histórias aproximem os Azevedo. E como esse texto é bem fresquinho, acaba de ser lido no Lasar Segall, peço a compreensão dos meus amados, idolatrados, pátria amada, salve, salve, amigos da Oficina de Escrita Literária, que têm sido parte fundamental nesses projetos de escritura. Amor é o que não falta.


A Azeveda bailarina

            Peguei o papelzinho dobrado em quatro e comecei a ler.
1)    Com que artista você se acha parecido(a)? R: Ângela Vieira.
2)    Que parte do seu corpo você mais gosta? R: Minhas perninhas finas, que me levam pra onde eu quero.
3)    Que talento você gostaria de ter? R: O dom da palavra.
4)    O que você sonhava em ser quando era criança? R: Bailarina.
5)  Qual o seu cantor favorito? R: Renato russo.
Quem poderia ser aquela pessoa da minha família, que queria ser bailarina? Era o Natal de 2009, na casa do tio Agustinho e ao invés de um amigo secreto, minha prima tinha organizado essa brincadeira. Todos nós respondíamos essas perguntas e algumas mais, devolvíamos os papéis e ai, sorteávamos. Igual a um amigo secreto. A ideia era descobrir de quem eram as respostas. Eu não tinha a menor ideia. Olhei pra todo mundo ali, mas nenhuma daquelas caras me convencia de que queria ser bailarina quando criança. A brincadeira começava e eu ainda sem saber quem era minha amiga.
Fui tentando eliminar as possibilidades. “Deixa eu ver, a mamãe, eu sei que nunca quis ser bailarina. Ou será que ela nunca me disse? Não, não é possível que a mainha tenha querido ser bailarina e nunca tenha me dito! Se bem que ela era louca que eu fizesse balé. Só não fiz porque em Russas não tinha escola. Ufa! Escapei por pouco! Mas, a mamãe... A Lidi, talvez. É, a Lidi eu sei que fez balé quando era menina."  Era bem mais fácil pensar na possibilidade de que uma de minhas primas tivesse esse desejo, do que a Vilanir ou uma de sua irmãs. A brincadeira continuava e eu bailando na minha ignorância. Mais uma descoberta, e outra, até a Deyse, que estava com meu papel, adivinhar que era meu. Chegou minha vez. 
         Eu li, de novo em voz alta, pra ver se descia sobre mim uma luz azul clarividente. Nada. Terminei de ler, olhei pra todo mundo e disse que não faria a menor ideia de quem seriam aquelas características. Aí, minha amiga se descobre e vem na minha direção ganhar seu abraço. Era tia Socorro! A quarta das seis filhas, a nona dos 12. Era mesmo, ela parecia a Ângela Vieira! E até caminhava com uma leveza de bailarina. Conheci minha tia no lugar da casa que, hoje, mais me encanta, a cozinha. Aliás, minto. Conheci minha tia nos preparativos das festas de família. E aí, pode até ser difícil imaginar, mas nessas ocasiões toda a casa da fazenda dos meus avós, virava cozinha. No seu reino, ela é bem mais que uma cozinheira de mão cheia. Ali se revelava uma maestrina, coordenando o que todas as irmãs estavam fazendo, nos mínimos detalhes, e ainda cumprindo, ela mesma, outra tarefa. Ah, e nessas horas elas gostam de enlouquecer todas de uma vez. Deve ser pra terem do que dar risada depois, porque tudo, sempre dá certo. A comida sempre sobra. Os convidados sempre saem satisfeitos.
Assim foi na festa de Bodas de Ouro dos meus avós, nos quinze anos de suas filhas e de outras primas, nos Natais feitos na fazenda, nos aniversários do vovô e da vovó. Enfim. Ela sabia tudo, fazia de tudo. Dúvida? “Minha filha, pergunte ali a sua tia se é pra colocar o molho agora?”,”Tem alguma coisa pra fazer, mamãe? Sei não, pergunte a sua tia, que ela é que sabe”. Era assim, quer dizer, ainda é. Ela sabe fazer e confeitar bolo, ela sabe o que pode ser feito dias antes e deixar pronto, ela sabe como tirar mancha de roupa, ela sabe preparar pratos sofisticados, ela sabe consertar eletrodomésticos, ela sabe, ela sabe, ela sabe... e tudo faz com esmero. A verdade é que ela sabe como quase tudo. Eu diria que ela é o MacGyver de saia. No lugar das mãos, ela nasceu com dois canivetes suíços. Ou melhor, numa um canivete e na outra um multiprocessador.
Casou com um Soldadinho, que depois de um tempo, ficou de chumbo, com quem teve cinco filhos: três meninas e dois meninos. E esse vigor, essa rapidez, essa capacidade de pensar em tudo ao mesmo tempo, esse “frivião” estão também nos genes. Tanto, que a maioria dos herdeiros não nega quem lhes pariu e vai pela vida com uma energia invejável, que eu, nem que quisesse, teria! É dominadora como qualquer Azeveda (é assim que elas se intitulam). Talvez a mais e perfeccionista. Imagino que ela teria mesmo sido uma linda bailarina. Uma não, A bailarina do Municipal, ou melhor, do Teatro José de Alencar. E olha que aquela estrutura de ferro, delicadamente desenhada com um estilo Art Nouveau, representa muito bem essa mulher. Uma época aí, ela andou muito doente, fez cirurgias complicadas e que se complicaram. 
            Eu acompanhava tudo através da preocupação da minha mãe, que nunca me dizia exatamente o que estava acontecendo. Ainda hoje não consegui saber o que foi. Talvez mamãe achasse que eu não entenderia. Somos assim, os adultos. Mas eu entendia sim. Entendia que minha tia boleira estava correndo sérios riscos. E minha festa de quinze anos, quem ia fazer? Felizmente ela sarou. Prevaleceu o ferro daquelas perninhas finas.
Outra habilidade sua, reconhecida pela comunidade dos Azevedo, é a arrumação. Na verdade eu sempre achei que ela fosse a bruxa do encolhimento. Por isso que tudo que ela dizia que caberia, tinha caber. Uma vez, ela viajou de Parnaíba a Crateús, dirigindo um Fiat Uno, carregando, dentro do carro, um freezer horizontal, as malas, o Soldadinho e a Rosa. 
          Tudo bem que a pobre da Rosa veio a viagem todinha de perna pra cima. Foram parados pela Polícia Federal, que constatou que sua carteira de motorista estava vencida. Ela jurou, de pés juntos, que não sabia. Todo mundo tem multa por infração, só a bailarina que não tem! E tem mais, ninguém se atreva a se meter no seu domínio. Uma vez, nos preparávamos para voltar de uma viagem à serra, e como ela reclamava que tinha que fazer tudo sozinha, que o Soldadinho não ajudava, eu inventei de arrumar a bagagem na mala do carro. Tarefa, que modéstia, à parte, eu faço muito bem. O tio Dedé passou por mim e, bem discretamente, me convenceu de que aquilo era inútil. Que provavelmente não ficaria do jeito dela e que seria mais trabalho desfazer e fazer de novo. Eu que não sou de discutir com quem sabe mais, imediatamente, parei de colocar as malas no carro e até tirei as que já estavam. Assim é essa Azeveda. 
 Um dia perguntei a ela:
— Tia, porque tu não delega as tarefas pra gente fazer? Assim tu não fica sobrecarregada, mulher  – a resposta foi tão simples e honesta que eu nem retruquei.
— Ah, minha filha, eu não consigo não.
Essa é minha tia Socorro! Que gostaria de ter o dom da palavra, porque talvez ache que não fala bonito, mas que gosta de conversar e contar histórias até dizer chega. E eu adoro ouvi-la! No fim, graças às chatices do painho, ela não fez minha festa de quinze anos. Eu nem tive festa! Pronto. Foi o que precisei pra passar a vida querendo inventar uma festa pra fazer com minha tia. Mas hoje, tanto depois, bem que eu podia inventar uma alternativa, melhor que uma festa. Já sei! Que tal uma aula de balé?


Fotos: Devem ser da Karol, durante o aniversário de 96 anos da vovó. Na primeira, tia Socorro está com sua mãe, e na segunda, ela está com o Soldadinho, duas dos filhos, o Vange e o Arthur ainda muito filhote.

10 comentários:

  1. Karê, ficou linda a sua crônica! Adorei

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    1. Obrigada, querida. Essa foi a última, Ná. Quando você vai me mandar uma das suas?

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    2. Oi Karê,
      Ainda não escrevi nada, estou ainda envolvida com a casa. Espero em breve voltar a escrever. Um abraço

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  2. Adorei prima, alias vc tem o dom para escrever. Bjs. Regina.

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    1. Você por aqui, querida!!! Que felicidade. Muito obrigada pelo comentário e sinta-se sempre muito bem vinda. Bj

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  3. Um super texto, a comentar sobre uma super mulher! Parabéns pela forma simples e clara de relatar alguém com tanta energia maravilhosa!

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    1. Bander é tua identidade secreta, é? Obrigada pela visita e pelo comentário. É muito bom escrever sobre uma uma pessoa tão especial.

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  4. Anna, adoramos o texto!!!! A mamãe quase morreu de tanto rir (e eu, coitada, depois de um exame...). Enfim, você é mesmo especial!!!! Porque você não "aterrissou" na minha vida há mais tempo? Ah! a mamãe disse que você só esqueceu de mencionar que o cantor predileto dela era o Renato Russo. Moderninha essa bailarina! Pra quem pensava que ela iria dizer que era o Roberto Carlos, né? Amamos você de montão! Obrigada por existir!

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    1. Fazinha, você nem imagina como é legal ler um comentário assim sobre um texto que se escreve. E pode deixar que vou acrescentar o cantor. Eu também amo muito você e vocês e me sinto muito amada. E isso é lindo! Obrigada. Muito obrigada.

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  5. Karê,

    Mais uma de suas crônicas lindas e engraçadas. Linda pela sua família e engraçada pelo seu humor em relatar estes acontecimentos peculiares. Já participei de uma brincadeira assim com o pessoal da faculdade (no final do século XX).é muito divertido!

    bj,

    Mauzinho

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