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domingo, 18 de março de 2012

Casa de banhos


        Olá minha gente querida, aqui está mais uma Crônica de Balaio. Esta postagem dedico a minha amada cunhada Karinne, que gostou muito desse texto quando leu e topou o desafio de traduzir o "Encantador de traças" para o espanhol. Valeu, cunhadinha. Boa leitura, pessoas!



         Conta minha mãe, que da primeira vez que ela me banhou eu enferrujei. Já nasci assim, com a pintura de qualidade duvidosa. Deve ser um problema de quem nasce mais no final do ano, quando a matéria prima disponível já começa a ficar escassa. Pois é, desde então, o que poderia ser uma aversão virou uma obsessão. Sempre adorei tomar banho! Talvez por isso, meus banhos tenham sido alvo de críticas - “Eita, a Anna vai entrar no banheiro”. “Não Anna, deixa eu ir primeiro. Senão, hoje a gente só sai amanhã”. “Anninha, minha filha, há meia hora você está nesse banho!” - Nossas casas sempre tiveram só um banheiro. Por aí se tira o quão polêmico era o tema. E assim, eu cresci com pouquíssima tolerância para o suor. Como eu saberia se não era ele o responsável pela ferrugem? Mas bebê, nem sua! Bom, melhor evitar. Principalmente, quando se nasce e cresce no sertão do Ceará, aprendendo a se equilibrar na vida sobre as duas rodas de uma bicicleta. E era de bicicleta que íamos e vínhamos para e de qualquer lado. Inclusive para a igreja que ficava a uns 3 km de casa, no alto de um tabuleiro.
         Naquela época, a igreja tinha uma programação diversificada e sua força missionária nos levava a lugares distantes da cidade. Detalhe, alguns, tão longe, que não era possível ir de bicicleta. Era o caso do Sítio Paraíso, aonde todos os domingos, uma pequena comitiva, que ia de carro até lá, realizava a Escola Dominical, depois do almoço, e o culto de louvor, depois do jantar. Lembro-me de participar dessas atividades desde muito pequena. E quando fui percebendo que o intervalo entre a Escola dominical e o culto da noite era tempo suficiente para um banho, ainda que rapidinho, se é que eu seria capaz dessa peripécia, passei a planejar argumentos para convencer minha mãe, e depois a dona da casa, de que um banho não faria mal a ninguém. Ainda que só eu tomasse. Eu imaginava que aquele ato poderia beneficiar toda a comunidade. Por quê? Ora vejamos. Eu estava no auge da adolescência. E é na adolescência que o corpo começa a exalar cheiros, até ali, inexistentes. Claro que esse argumento eu jamais usaria! Mesmo porque, o banho para mim era um ritual não só de limpeza.
         Engraçado é que eu não me lembro de ter usado o banheiro da casa onde eram feitas as reuniões lá no Sítio Paraíso, antes do dia em que tomei aquele banho. Nesse dia, percebi como somos capazes de criar fantasias contra a realidade que vemos. A casa era de barro prensado contra uma trama de varas. Dava até para ver as marcas dos dedos na tentativa de alisar as paredes, pintadas com cal por fora. A cobertura era de telha mesmo e para o quintal dava um alpendrezinho coberto de palha da carnaúba, com uma idéia de pia embaixo e dois grandes potes de barro, ao lado.
- Irmã Zilá, você pode arranjar um pouquinho d’água para a Anninha se molhar?
- É para agora, dona Vila. Já levo lá, Anninha. – “Onde?” – Pensei. Minha mãe tinha resistido em levar a diante meu pedido, porque além da água era necessário incomodar a irmã Zilá, por um sabonete e um trapo de pano limpo para eu me enxugar. Não tínhamos levado nada.
- Está aqui um paninho. É velho, mas está limpinho, irmã. – Disse a dona Zilá me fazendo segui-la até o fundo do quintal, carregando, de um lado, um pequeno balde cheio d’água e do outro um pano velho, no ombro, e um naco de sabão em barra azul, na mão.
Até ali eu ainda não sabia aonde era o banheiro. Depois de darmos alguns passos em diagonal no quintal e passarmos embaixo de um embuzeiro, notei um cerdadinho de mais ou menos um por um, com paredes de palha e estaca. Era o banheiro. A cobertura? O céu. O piso? A terra. O mesmo barro das paredes. Do lado que dava para a casa, até que as folhas secas tapavam bem o que se fizesse lá dentro. Já para o outro lado, o que me separava do resto do mundo era uma cerca de paus tortos colocados um ao lado do outro. Eu me sentia mais no mundo do que em um banheiro. Quando vi aquilo, pensei em desistir do meu ritual. Êpa, no cercado ao lado passavam cabras, bois e porcos. Xii... algum bípede de chapéu, agora ou depois, também passaria. Morri de vergonha e suei na testa. “Ah, Anna. Eu não vou tomar banho aqui, não! Como não? Pois se a gente toma banho quase desse jeito na fazendo da vovó? Ah, mas é diferente, é no cacimbão. Ah, mas a irmã Zilá teve todo esse trabalho para nada? Vai saber o que um balde d’água significa aqui. Olha esse pano aí, e é sabão o que ela trouxe! O pano está limpo. Mas tem um cheiro estranho. Se eles usam isso eu também posso usar. E o chão? Isso vai virar uma lama!”
- Anninha, não demore não, que de noite fica muito escuro. – Disse a dona Zilá, deixando o pano pendurado em uma estaca e o pedaço de sabão preso em uma forquilha. Foi aí que eu me apavorei. Perto do Equador o sol se levanta e se deita com uma rapidez impressionante! Logo estaria tudo escuro. Ela saiu e eu paralisei. Olhei o balde, o pano, os bichos do outro lado da cerca, o céu e o suor que brotava dos meus poros e tomei a decisão. Definitivamente era o suor e não a água o culpado pela maldição da ferrugem. Acreditei profundamente nisso e comecei a tirar a roupa. Agora o que me preocupava não era nem a noite, nem o pano, nem o sabão. Era a vergonha. Eu sentia vergonha da palha, dos paus, do céu, de tudo! Para completar a agonia, um porco, que eu não tinha visto chegar, começou a fuçar ao pé da cerca, uma pocinha de lama ensaboada. Que susto eu levei! A essa altura, dá para imaginar o quanto meu corpo encolhido e amedrontado contava ao céu tudo o que eu sentia e pensava. Roupas na cerca, cuia cheia de água e o melhor era me agachar para evitar que a lama respingasse muito alto. Preferi ficar de frente para o porco a dar-lhe as costas. Vai saber... Além de tudo, eu tinha que fazer um cálculo matemático e saber quanto de água eu poderia gastar para me molhar e ainda sobrar para depois tirar o sabão. “Toma desavisada, ainda vai inventar banho fora de casa?”
Ainda bem que me veio à memória uma noite de calor em que eu e minha mãe tomamos banho nuas, na beira de um açude perto de nossa barraca, durante um acampamento. Aquela memória foi libertadora. Tudo bem que não havia água suficiente para eu me esconder dentro dela, mas fazer o quê? Me dediquei à execução daquele trabalho para que ele terminasse antes do por do sol. Assim foi. Nunca tomei um banho tão rápido na vida! A última cuia d’água derramei sobre meu rosto como quem ora. “O que eu não faço, por um banho...”
- Anninha! Deu certo filha?
- Já terminei mãe! – Gritei lá do fundo do quintal. O porco se assustou e saiu fuçando o rego que a água fazia no terreno alheio. Já vestida, pude achar lindo o por do sol no sertão e caminhei cuidadosamente até a casa, evitando sujar os pés.
- E o pano minha filha, deu para se enxugar? – Perguntou a dona Zilá toda satisfeita por ter atendido meu pedido.
- Hãm, hãm. – Respondi balançando a cabeça para frente e para trás.
- É, irmã Zilá, se não se enxugar, ela enferruja, sabia? – Disse minha mãe rindo e me esperando na porta dos fundos.
         Se meus banhos já eram cheios de história, depois desse, então, passaram a ser momentos deliciosos do meu dia. Não apenas para limpar o suor e evitar a ferrugem, ou para me preparar para o dia de trabalho ou o descanso da noite, mas também para recuperar a disposição, o frescor e a alegria, um verdadeiro remédio.

2 comentários:

  1. Karê,

    Sou obrigado a jogar a toalha! Seus "causos" do Sertão nordestino são muito engraçados! É lógico que um porco fugiria do banho, assim como o Cascão, do meu xará Mauricio de Souza, também fugiria. Ainda bem que hoje seus banhos precários são "águas passadas"... Mas que era gostoso tomar banho "de canequinha" era... Só de pensar em tomar banho "de canequinha" no inverno... Até me arrepiei! Quer saber de uma coisa? Vai tomar banho!

    bj,

    Mauzinho

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    1. Não é que me deu uma vontade de tomar um banho demorado e farto, menino? Um banho para me despedir dessa tarde de segunda-feria dia 19 de março e saldar a noite que vem por aí. Pois pronto. Vou tomar banho! Beijo, Mauzinho.

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